O banquete antropofágico

“… A vítima era capturada no campo de batalha e pertencia àquele que primeiro a houvesse tocado. Triunfalmente conduzido à aldeia do inimigo, era insultado e maltratado por mulheres e crianças. Tinha de gritar: “Eu, vossa comida, cheguei”. Após essas agressões, porém, era bem tratado, recebia como companheira uma irmã ou filha de seu captor e podia andar livremente – fugir era uma ignomínia impensável.

O cativo passava a usar uma corda presa ao pescoço: era o calendário que indicava o dia de sua execução, o qual podia alongar-se por muitas luas (e até por vários anos). Quando a data fatídica se aproximava, os guerreiros preparavam ritualmente a clava com a qual a vítima seria abatida. A seguir, começava o ritual, que se estendia por quase uma semana e do qual participava toda a tribo, das mulheres aos guerreiros, dos mais velhos aos recém-nascidos.

Na véspera da execução, ao amanhecer, o prisioneiro era banhado e depilado. Depois, deixavam-no “fugir”, apenas para recapturá-lo em seguida. Mais tarde, o corpo da vítima era pintado de preto, untado de mel e recoberto por plumas e cascas de ovo. Ao pôr-do-sol iniciava-se uma grande beberagem de cauim — um fermentado de mandioca. No dia seguinte, pela manhã, o carrasco avançava pelo pátio, dançando e revirando os olhos. Parava em frente ao prisioneiro e perguntava: “Não pertences à nação … (tal ou qual) , nossa inimiga? Não mataste e devoraste, tu mesmo, nossos parentes?” Altiva, a vítima respondia: “Sim, sou muito valente, e devorei muitos …” Replicava, então, o executor: “Agora estais em nosso poder; logo serás morto por mim e devorado por todos”. Para a vítima, aquele era um momento glorioso, já que os índios brasileiros consideravam o estômago do inimigo a sepultura ideal. O carrasco desferia, então, um golpe de tacape na nuca da vítima.

Velhas recolhiam, numa cuia, o sangue e os miolos; o sangue devia ser bebido ainda quente. A seguir, o cadáver era assado e escaldado, para permitir a raspagem da pele. Introduzia-se um bastão no ânus, para impedir a excreção. Os membros eram esquartejados e, depois de feita uma incisão na barriga do cadáver, as crianças eram convidadas a devorar os intestinos. A seguir, retalhava-se o tronco, pelo dorso. Língua e miolos eram destinados aos jovens. Os adultos ficavam com a pele do crânio e as mulheres com os órgãos sexuais. As mães embebiam o bico dos seios em sangue e amamentavam os bebês. As crianças eram encorajadas a besuntar as mãos no sangue vertente e celebrar a consumação da vingança. Os ossos do morto eram preservados: o crânio, fincado numa estaca, ficava exposto em frente da casa do vencedor; os dentes eram usados como colar e as tíbias se transformavam em flautas e apitos.”

Trecho com o título “O Banquete Antropofágico” da página 11 do livro HISTÓRIA DO BRASIL, projeto editorial da Publifolha (1997) para os jornais Folha de S. Paulo e Zero Hora, com base no texto de Eduardo Bueno, a partir da narrativa do mercenário alemão Hans Staden, prisioneiro dos índios tupinambás entre 1554 e 1557.

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