Por definição, há um grau bastante específico que auxilia o entendimento entre os limites do Terror e do Horror na história da cinematografia. Essas barreiras nem sempre estão postas claramente e isso é algo ótimo porque permite que os filmes do gênero se expandam tanto em termos de seu sentido quanto em relação a sua forma. E foi exatamente do bom trabalho destes elementos que a diretora australiana Jennifer Kent roteirizou e dirigiu seu excelente terror “O Babadook” (2014).
Na trama, Amelia (Essie Davis), uma mãe viúva e atormentada pela morte violenta de seu marido, luta contra os medos que o filho, Samuel (Noah Wiseman), tem de estar sozinho em seu quarto à noite. Aos poucos, ela e a criança descobrem uma presença sinistra ao redor deles. Direto e objetivo, o longa tem na sua estilização e modo de produção prático suas maiores forças. Aqui, não estamos diante de uma experiência didática e preguiçosa como costumamos notar quando estamos diante de algumas produções vindas sobretudo de Hollywood.
Há outras chaves em jogo, neste caso. E a praticidade com que este longa foi produzido é uma delas. Kent leva para a tela toda as suas expertisses do cinema independente e com isso cria uma atmosfera de aproximação que favorece nosso próprio engajamento na obra enquanto expectadores. Citar a indústria mainstream norte-americana é importante porque conseguimos visualizar as diferenças entre a obra que utiliza os recursos técnicos a favor da sua autenticidade e aquela cujos recursos disponíveis não agregam novidade alguma em termos de linguagem.
Se pensarmos em um longa como Mama (2013), é visível estarmos diante de apenas mais um filme sobre fantasmas com um roteiro bastante ineficiente e péssimas atuações. Dizer isso é importante porque nos leva para o ponto da relevância da figura do diretor e sua posição de “autoridade”, em um sentido de ele como aquele que usa da autoria para imprimir as ideias e a forma que dará consistência ao filme. Dotados desses elementos é que o cinema se expande enquanto proposta artística, não por uma questão de vaidade, mas de originalidade na prática das estórias que contamos por meio de imagens e sons.
Pode parecer óbvio, mas a natureza cinematográfica de um filme conta muito. Conta enquanto modo de nos dizer e dá-se a ver a narrativa ali desenvolvida. Assim como para a reafirmação do cinema como fazer estético-conceitual. Esse afirmar-se tem gerado frutíferos debates na última década, sobretudo quando refletimos sobre a ideia da gourmetização do cinema de horror/terror na contemporaneidade. Porque, para alguns realizadores do gênero, há uma espécie de negação de determinadas vertentes e noções que lhe são próprias e se metamorfosearam ao longo dos anos e pelos dois últimos séculos.
Diretores como Robert Egger (A Bruxa) e Ari Aster (Hereditário) endossam bastante essa perspectiva de um cinema de terror que se oferece como uma nova experiência que parte do gênero para, de alguma forma, negá-lo. Dai, muitos desses realizadores defendem suas obras como estórias sobrenaturais que devem ser entendidas pelo drama e psicologismo contidas e nas quais elas se revestem. Buscando olhar a questão pelo prisma dos autores, entendemos suas intenções em defender a vertente autoral que tende a trazer para o público narrativas muito mais ousadas e sinceras das que usualmente percebemos na cena dos blockbusters.
O problema é que essa negação nada parece ter a ver com o resultado alcançado na tela. Porque diante de O Babadook, o que vemos é um filme muito sólido em termos de proposta. Sua forma, nesta mesma linha, garante sua permanência dentro de um “cânone” que se sobrepõe àquela proposta de terror clichê da qual falamos anteriormente. E se é terror, na gramática cinematográfica, é por definição o medo psicológico que precede a experiência horrível; e o horror, por sua vez, refere-se ao medo depois do horrível visto, o longa de Jennifer Kent é completo por englobar essas duas vertentes na sua construção.
Nele, o terror se ramifica pelo medo dos conflitos que a família enfrenta e que só vemos por meio de abstrações, tais quais a mentira, as fobias, as dores da ausência afetiva e de presença, além de outros pontos que tem no psicologismo sua maior força. Passado o primeiro ato, é com a aparição do monstro que o horror se manifesta. Amelia avista o Babadook e compreende a gravidade do perigo que corre junto ao filho.
Isto posto, é quando notamos o quanto o filme busca positivamente subverter a própria narrativa criada até ali. Ou seja, se no princípio, todos os problemas emergiam da figura perturbada de Samuel enquanto uma criança problemática. Agora, vemos Amelia se transformar na nova ameaça da estória. E como toda boa obra, o filme inverte a chave da natureza dos seus personagens como se víssemos a dois filmes dentro de um só. Essa é a originalidade do cinema de gênero contemporâneo.
Logo, O Babadook é um referencial filme de terror que positivamente se imagina para além dos seus limites canônicos. Nele, há horror e drama psicológico trabalhando juntos para a criação do filme que não intenta apenas assustar numa experiência de 1 hora e 33 minutos. Ele faz mais. Nos apresenta uma história de monstro que se desenha literal, mas que se revela quase que metafisicamente em sua conclusão, ou seria consideração final? Porque aqui, a ideia do medo não se encerra ao fim da projeção, ela se prolonga na reflexão que fazemos acerca dos monstros que vivem conosco e com os quais temos de aprender a lidar para sobrevivermos no desafio que é a vida.
FICHA TÉCNICA
Título Original: The Babadook
Tempo de Duração: 93 minutos
Ano de Lançamento: 2014
Gênero: Terror, Drama
Direção: Jeniffer Kent