INTRODUÇÃO
A motivação deste texto decorre de uma solicitação de amigos militantes cristãos, outrora engajados, nos anos 1950/60, no movimento universitário católico JUC (Juventude Universitária Católica), cujo nascedouro no Brasil esteve articulado por uma vertente conservadora ligada ao Centro Dom Vital, mas que no desenrolar de suas atividades os estudantes começaram a questionar a passividade política da Igreja Católica diante dasdesigualdades gritantes da sociedade brasileira, influenciados pelas obras de pensamento de Jacques Maritain, Emmanuel Mournier e de Pierre Theilard de Chardin. Um ponto de inflexão para sua fase mais progressista foi a mudança do papado com a eleição de João XXIII. Nomes como Plínio de Arruda Sampaio e Herbert José de Sousa (Betinho) marcam a sua história.Com o golpe militar de 1964, seus membros passaram a ser perseguidos pelo regime ditatorial. Em 1968 a JUC foi dissolvida.
Já externei em artigos passados a respeito da naturezapolítica do governo federal brasileiro basear-se em princípios de necropolítica quando considerou a pandemia mundial da Covid-19 como “uma simples gripezinha”,“diagnosticou” despudoramente um “tratamento precoce”à base de cloroquina e motivou ininterruptamente ao desrespeito das medidas de confinamento social adotadas pelos estados e municípios. Resultado: hoje o número de mortos no Brasil beira os 240.000 (o terror da bomba atômica despejada em Hiroshima matou 174 mil pessoasem 1945). Mortes, tanto umas como outras, ocorridas sob o olhar atento de Deus.
Diante deste inferno dantesco brasileiro, esses referidosamigos, para minha grande surpresa, solicitaram-me algo inusitado: de pontuar algumas linhas sobre a Lei da Eutanásia aprovada recentemente em Portugal, a qual criou grande polêmica nos meios católicos lusitanos, com manifestações contrárias de personalidades notórias como a do o cardeal José Mendonça Tolentino e a do o padre Vasco Pinto de Magalhães, especialista em bioética e seguidor da pastoral universitária daquele país.
Como não é de minha índole deixar de atender a solicitações de amigos, mesmo quando o tema solicitado apresenta-se além de minha capacidade de conhecimento e da minha pauta de discussão, mas por entender que o contexto presente impele-nos todos a tomar posiçõesclaras e decididas sobre os retrocessos em curso contra os direitos civis, às liberdades individuais – em particular a liberdade de pensamento – e à diversidade social, vejo-me na obrigação de pelo menos deixar registradas algumas breves opiniões diante desta fraterna provocação, para colaborar com o debate em curso.
Nesta introdução, gostaria de recorrer a um trecho de um frondoso artigo do sociólogo francês Émile Durkheim intitulado “O individualismo e os intelectuais” (Edusp, 2017), no qual o autor coloca em relevo a extremaimportância de se ter uma compreensão justa e correta do conceito de individualismo, diferenciando-o dos conceitos de “egoísmo” e de “utilitarismo”, este último desenvolvido amplamente pelo antropólogo inglês Herbert Spencer (1820-1903), dando força a um darwinismo social pela vitória do mais forte sobre o mais fraco.
Diz Durkheim:
À medida que as sociedades se tornam mais densas e estendem-se por territórios mais vastos, é preciso que as tradições e as práticas, para poder moldar-se à diversidade das situações e à mobilidade das circunstâncias, adquiram um estado de plasticidade e de inconsistência que não oferece mais tantas resistências às variaçõesindividuais. Estas, estando bem menos contidas, produzem-se mais livremente e multiplicam-se: isso quer dizer que cada qual segue cada vez mais seu próprio sentido. Ao mesmo tempo, em consequência de uma divisão do trabalho sempre mais desenvolvida, cada espírito encontra-se direcionado para um ponto diferente do horizonte, reflete um aspecto diferente do mundo e, por conseguinte, o conteúdo das consciências difere de um sujeito para o outro. (p. 55. Grifos meus).
Para Durkheim, a dignidade de cada indivíduo reside no fato de ele carregar em si a humanidade. Ela é respeitável e sagrada, estando presente em todos os indivíduos que têm o mesmo direito a esse respeito religioso e civil.Portanto, o indivíduo é ao mesmo tempo objeto e agente deste culto, esteja ele onde estiver e da forma que for. “O individualismo assim entendido é a glorificação não do eu, mas do indivíduo em geral” (p. 49).
METODOLOGIA
Para escrever aqui as minhas singelas impressões, adotei como método, primeiramente, a leitura do Projeto de Lei 832/XIII/3ª, produzido pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista português, elaborado em 2018, portanto dois anos antes da chegada da pandemia do coronavírus, que trata e regula as condições especiais para a prática de eutanásia não punível para pacientes maiores de 18 anos, em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva grave ou doença incurável e fatal, o qual deu origem à Lei aprovada em 29 de janeiro de 2021, por 136 votos a favor e 78 contra, faltando agora a sanção presidencial.
Na exposição de motivos do referido Projeto, está gravado que
“ao longo do tempo, cada indivíduo é convocado a tomar inúmeras decisões vitais sobre sua vida, e que só aos próprios dizem respeito. O nosso quadro institucional é, neste domínio, particularmente claro, assumindo uma inspiração humanista assente numa leitura respeitadora da autonomia individual de cada pessoa. Não deve o Estado impor uma única concepção de vida, um único trajeto de escolhas individuais, ou sequer um único modelo de pessoa, que possa enquadrar essa tomada de decisões. Cada pessoa, desde que não prejudique a terceiros, é a arquiteta livre do seu destino, mesmo nos momentos mais difíceis da sua vida”.
Outra ferramenta metodológica adotada, além da leitura do referido Projeto, foi a participação de 12 (doze) amigos e amigas, competentes profissionais das mais diversas áreas do conhecimento, aos quais solicitei um suporte de suas visões em relação ao referido Projeto, auxiliando-me assim na ampliação de minha base de visão sobre o tema.Definimos o domingo 07 como o prazo final para envio de seus pareceres e opiniões. Então agora passo a reproduziralgumas dessas valiosas contribuições de oito amigos que me enviaram suas impressões e experiências de vida.
Como operador da área da saúde, pensei de apresentar-te dois conceitos que na minha experiência se mostram com vital importância nas decisões relativas ao tempo final de qualquer ser humano. O primeiro conceito é o de PACIENTE COM CUIDADOS PALIATIVOS. São todos aqueles para os quais os recursos conhecidos para a cura de suas doenças esgotaram-se. O direito de morrer com dignidade significa que todas as pessoas podem viver os últimos dias de suas vidas cercadas de amor e de carinho, que não estão desamparadas nessa fase de transição entre a vida e a morte. Logo, OS CUIDADOS PALIATIVOS devem garantir que essas pessoas possam DECIDIR SOBRE O SEU TRATAMENTO, INCLUINDO O DIREITO DE ESCOLHER ONDE MORRER E COMO MORRER, O ALÍVIO DA DOR E DO SOFRIMENTO INÚTIL. Ou seja, é dar ao paciente incurável a possibilidade de morrer com nobreza e integridade, com respeito à sua autonomia de decisão e dignidade.
A segunda categoria é a de EUTANÁSIA PASSIVA. O conceito de eutanásia está relacionado à concepção grega de uma morte digna: “eu” (bom, verdadeiro) + “thanatos” (morte). Enquanto a eutanásia ativa consiste na realização de algum procedimento que culmine na morte, a EUTANÁSIA PASSIVA compreende a interrupção ou omissão de algum procedimento médico, deixando de prolongar a vida. Essa atitude se opõe diametralmente à “Distanásia” que é aquele procedimento de combater a morte a qualquer custo, prolongando sofrimentos e agonias desnecessários. A “Distanásia” nega o princípio da não-maleficência, podendo-se dizer claramente que é uma deformidade da conduta médica. No meu entender, o tratamento fútil e desumano deve dar lugar aos cuidados paliativos que se pautam na humanização e na qualidade da vida e na dignidade da morte dos seres humanos. Países como Alemanha, Áustria, Dinamarca, França, Hungria, Noruega e República Checa autorizam a eutanásia passiva pela qual os pacientes podem escolher encerrar tratamentos e auxílios de prolongar a vida em doenças incuráveis.
Com minha mãe fizemos assim. Minha mãe sempre manifestou o seu desejo. Como meu irmão é médico,conseguiu retirá-la da UTI e levá-la para casa, em 2008. Hoje isso é mais simples. Sempre que possível tem havido uma conduta de transferir pacientes terminais de UTIs para quarto comuns em hospitais ou de remover a pessoa pra casa em “home–care” com cuidados paliativos. Tivemos outro caso assim na família no ano passado. A pessoa foi ‘extubada’, levada por quarto, ficou em cuidados paliativos e pode se despedir da família e dos amigos com dignidade, serenidade e paz. Foi uma das experiências mais fortes e belas que tive na vida.
A segunda observação aponta para o fato, tanto em Portugal como aqui no Brasil, da inexistência de quaisquer impedimentos constitucionais para a discussão da matéria: não há nenhuma proibição clara para que a eutanásia e a morte assistida não sejam previstas. Portanto, a discussão se dá no objeto do Projeto, no caso, se há ou não o direito de uma pessoa dispor de sua própria vida, cujo titular, tendo as condições de manifestar livremente a sua vontade, possa dispor dela, ou se a vida seria um bem que transcende a esfera do indivíduo e pertence à coletividade e ao Estado. Finalmente, o Projeto apresenta-se muito bem “amarrado” nas suas diversas exigências: por exemplo, na obrigatoriedade da manifestação de diversos médicos e especialistas; na previsibilidade da suspensão do pedido; na existência e nas atribuições da Comissão. Está muito bem desenhado.
Uma questão importante a destacar é a exigibilidade para o procedimento ser realizado só para portugueses ou a residentes em Portugal, evitando a criação de “mercado de eutanásia” (incentivando indivíduos a se locomoverem ou procurarem Portugal apenas com fins de eutanásia).
Now, as I turn 85 Friday, with my life closer to its end than its beginning, I wish to help give people dignity in dying. Just as I have argued firmly for compassion and fairness in life, I believe that terminally ill people should be treated with the same compassion and fairness when it comes to their deaths. Dying people should have the right to choose how and when they leave Mother Earth. I believe that, alongside the wonderful palliative care that exists, their choices should include a dignified assisted death.
TRADUÇÃO: Agora, quando completo 85 anos na sexta-feira, com a minha vida mais perto do fim do que do começo, desejo ajudar a dar às pessoas dignidade na morte. Da mesma forma como argumentei, com firmeza, pela compaixão e justiça em vida, creio que pessoas com doença em fase terminal deveriam ser tratadas com a mesma compaixão e justiça no que diz respeito à morte. Pessoas nesta condição têm o direto de escolher como e quando desejam deixar a Mãe Terra. Juntamente com o cuidado paliativo maravilhoso que existe, creio que as suas escolhas devem incluir uma morte digna assistida.
I believe in the sanctity of life. I know that we will all die and that death is a part of life. Terminally ill people have control over their lives, so why should they be refused control over their deaths? Why are so many instead forced to endure terrible pain and suffering against their wishes? I have prepared for my death and have made it clear that I do not wish to be kept alive at all costs. I hope I am treated with compassion and allowed to pass on to the next phase of life’s journey in the manner of my choice.
TRADUÇÃO: Acredito na santidade da vida. Sei que todos nós iremos morrer e que a morte faz parte da vida. Pessoas em estado terminal têm o controle sobre suas vidas, então por que deveríamos recusar-lhes o controle sobre a morte delas? Por que tantas pessoas são, pelo contrário, forçadas a suportar dor e um sofrimento terríveis contra o seu próprio desejo? Tenho me preparado para a morte e tenho deixado claro que não desejo ser mantido vivo a todo custo. Espero ser tratado com compaixão e ser permitido passar para a próxima fase desta caminhada na maneira de minha escolha.
Aqui, no campo da igreja católica, temos vários exemplos de pensadores, como Hans Küng ou Leonardo Boff, ambos cassados por João Paulo II, mas agora reabilitados pelo Papa Francisco. Não é fácil para uma instituição milenar, que se arvora a si mesma ser a detentora do monopólio da verdade, ceder espaços para pensamentos questionadores. Vou te enviar por e-mail uma sequência breve retirada de um livro de Küng, (MORRIRE FELICE – Ed. Rizzoli – 2015), como uma forma de participar a esta tua próxima produção textual.
HANS KUNG – MORRIRE FELICE – Ed. Rizzoli – 2015
TEÓLOGO CATÓLICO SUÍÇO
A minha ideia de concluir a vida em paz e harmonia se inspira na Bíblia. Não quero continuar vivendo como uma sombra de mim mesmo. É preciso um fundamento ético para uma medicina que tutele realmente a humanidade do paciente. O ser humano tem o direito de morrer quando já não tem nenhuma esperança de continuar levando o que, segundo o seu entendimento, é uma existência humana. Quando chegar o momento, eu tenho o direito, sempre que eu ainda seja capaz, de escolher com a minha responsabilidade quando e como morrer. Se me fosse concedido, eu gostaria de me apagar de modo consciente e de dizer adeus aos meus entes queridos com dignidade.
Para mim, morrer feliz não significa morrer sem melancolia nem dor, mas ir embora, consensualmente, acompanhado por uma profunda satisfação e pela paz interior. Afinal, esse é o significado da palavra grega eutanásia, que entrou em muitas línguas modernas, vergonhosamente, deformada pelos nazistas. Um autêntico “descanse em paz”. Depois de ter organizado tudo o que precisava ser organizado, com gratidão e com uma oração confiante. Para mim essa atitude se fundamenta, em última instância, na esperança de uma vida eterna que é o cumprimento definitivo da existência em outra dimensão da paz e da harmonia, do amor duradouro e da felicidade permanente. Essa é a minha ideia de morrer feliz, que se inspira na Bíblia.
Hoje é necessário levar em consideração o notável prolongamento da vida permitido pelos progressos, antes inimagináveis, da medicina moderna e da higiene; mas também é preciso levar em conta as ideias sucessivas, que sublinham os limites de uma medicina baseada em argumentos e critérios exclusivos das ciências naturais e da técnica. Aumentou a percepção da necessidade de dar fundamento ético a uma medicina global que tutele a humanidade do paciente.
Cada um de nós não é apenas “uma vida” determinada por parâmetros biológicos, mas é uma pessoa com relações, comunicação, afetos, e há uma qualidade de vida que não pode ser reduzida a quantidade de dias.
É consequência do princípio da dignidade humana o princípio do direito à autodeterminação, também para a última etapa, a morte. Do direito à vida não deriva, em qualquer caso, o dever de continuar vivendo em todas as circunstâncias. Também nesse caso não deveria reinar qualquer heteronomia, mas sim a autonomia da personalidade, que, para os fiéis, tem o seu fundamento na Teonomia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fundamento dos direitos humanos reside no fato da igualdade de todos perante a Lei, no reconhecimento da inviolabilidade da dignidade de cada pessoa e da consciência da responsabilidade dos indivíduos pelo seu agir pessoal. Este patrimônio constitui nossa memória cultural e ignorá-lo ou considera-lo como um mero passado seria uma amputação de nossa cultura no seu todo e privá-la de sua integralidade. Na consciência da responsabilidade do homem diante si e da humanidade, e no reconhecimento da dignidade inviolável de cada ser humano nossa cultura fixou os critérios do Direito.
O Estado democrático de direito é laico. Deve contemplar de forma positiva, ou seja, por via da Lei, todas as tendências filosóficas e religiosas que não ameacem a vida de terceiros, individual e coletivamente. Mesmo se tem como dever garantir os costumes e valores da maioria da população, que no caso brasileiro 80% declaram-se cristãos, tem por mesma obrigação garantir os direitos das minorias bem como as liberdades e autonomias individuais. Portanto, o pedido por pacientes, de eutanásia não punível, em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva grave ou doença incurável e fatal, nas duas categorias vistas acima – passiva e ativa – não pode impor-se como uma obrigação, mas como uma possibilidade legítima e legal do indivíduo.
Da mesma forma, nenhum profissional de saúde pode ser obrigado a praticar ou a ajudar ao ato de não prolongamento da vida ou de antecipação da morte, sendo assegurado o direito à objeção de consciência a todos que o invoquem.
Recordo-me minha avó paterna, aquela pessoa com quem pude perceber a dimensão ética e espiritual da vida, não tanto pelo seu ensinamento teórico, mas principalmente pelos atos concretos vividos em seu dia a dia. Por meio de suas ações eu pude abrir-me à possibilidade da fé em um Deus bondoso e generoso. Eu nunca a vi reclamando de nada. Todos os desafios da sua vida foram enfrentados bravamente. Contudo, guardava em seu coração um temor: de passar seus últimos dias de vida estendida num leito devido a alguma doença grave. Pedia diariamente a seu Deus que não lhe deixasse acontecer tal infortúnio. De fato, em julho de 1984, foi acometida, aos 69 anos, de um aneurisma cerebral que lhe retirou a vida de forma fulminante. Mas nem todos têm a mesma felicidade que ela teve em sua morte instantânea.
Obstinação terapêutica, cuidados paliativos, eutanásia passiva, eutanásia ativa são procedimentos conceitualmente muito próximos um do outro, dentro de um campo terapêutico que exige uma reflexão honesta e fecunda, conforme afirmou o teólogo Hans Küng ser preciso encontrar novos fundamentos éticos e médicos para o sofrimento humano em suas últimas etapas da vida, num mundo contemporâneo tão diferente demundos anteriores. Com seu exemplo, minha avó me fez acreditar que Deus não é cruel, nem inquisidor. Pelo contrário, acolhe a todos, sem exceção, de braços abertos, porque ama a todos sem medidas, tanto ontem como hoje.