Começo a coluna de hoje desculpando-me por tratar de um cult pouquíssimo visto pelo chamado grande público. Ao lado disso, devo esclarecer que, mesmo para familiarizados com a técnica cinematográfica, tomando-se isso como a capacidade de perceber o que faz de um filme arte, não se trata de uma obra transparente naquilo que pode ser compreendido em termos de mensagem. Longe disso, embora se trate de um filme único, um verdadeiro clássico, a ponto de ser considerado por críticos exigentes como o que se fez de melhor em termos cinematográficos no Brasil.
Realizado em 1931, Limite, mais exaltado que visto na sua integridade, é antes de tudo um filme desconcertante, desses que mexem com todos os sentidos, particularmente sensorial que é.
Mário Peixoto (1908-1992), seu diretor e roteirista, até então conhecido, por uns poucos, como poeta, embora considerado por Mário de Andrade a mais importante revelação literária do ano (1931), o fez como um rito de passagem da adolescência para a idade adulta.
A ideia surgiu, diga-se em tempo, de um fato inusitado: filho de uma família rica, Peixoto encontrava-se em Paris e teve com o pai, que o acompanhava, um desentendimento. Sob o desconcerto do atrito, como que por obra do acaso, toma nas mãos uma foto em que se vê uma mulher algemada, o que o leva a pensar sobre o destino da condição humana: o limite. Aí está o que é a essência desse filme que completa agora 90 anos desde a sua conclusão.
Feito apenas de imagens, a que se acrescentaria com o passar dos tempos diferentes trilhas musicais (a última versão vai de Debussy a Stravinski), Limite tem como eixo de estrutura planos recorrentes em que se veem três pessoas dentro de uma canoa em alto mar: Mulher 1, Mulher 2 e Homem 1.
Em flashback, na linha do que fez Sartre na peça Entre Quatro Paredes, em que, enclausurados, um homem e duas mulheres são condenados a uma vida em comum que aos poucos vai se tornando insuportável (“o inferno são os outros”), as personagens do filme de Mário Peixoto vivem esse mesmo pesadelo.
Não se ouve, no entanto, o discurso verbal (o filme, como sugerido antes, é não falado), mas a tessitura narrativa se constrói a partir da fotografia e dos movimentos de câmera intencionalmente nervosos de Edgar Brasil, a quem se deve atribuir muito da força poética do filme e de sua beleza incomum.
Limite foi rodado em Mangaratiba, cidade litorânea do Rio de Janeiro, e constitui por si só a grande obra do diretor, leve-se em conta o fato de que Mário Peixoto deixou inconclusos três outros títulos: Onde a Terra Acaba, A Alma Segundo Salustre e Meu Triste Pássaro.
Mas, aí reside a importância de exaltar-se o nonagésimo aniversário do filme, Limite constitui, como afirmei, uma obra única e desconcertante em proporções poucas vezes alcançadas em matéria fílmica. O ritmo da narrativa, a poesia que emana de imagens desconexas, a habilidade com que Edgar Brasil ‘escreve’ com a câmera, obtendo registros visuais tecnicamente complexos e carregados de simbolismo, fazem do filme de Mário Peixoto um objeto cinematográfico atemporal, digno de figurar na história do cinema como um exemplo vivo de que só a arte pode dizer em sua totalidade a complexidade da condição humana.
A sua preservação, num país que corre o risco de perder o impensável acervo da Cinemateca Brasileira (250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos relacionados ao cinema), é acontecimento que deve ser alardeado, comentado, analisado e difundido em jornais, revistas e outros meios de comunicação.
Limite está disponível no Youtube em cópias inteiramente restauradas.
Uma obra inclassificável.
Francisco Sebastião De Paula
Parabéns por mais um belo texto que nos nutre de beleza literária e de novos conhecimentos no universo da sétima Arte.