Notas desesperadas sobre a Palestina

I As palavras e as guerras coloniais
“Ao contrário do que estimam as pessoas de espírito, as palavras não brincam. Elas não fazem amor, como acreditava Breton, a não ser em sonho. As palavras trabalham para a organização dominante da vida.” (All the King’s men. IS, nº 8, janeiro de 1963).

As palavras cumprem funções estratégicas, isto é, na arte de guerra. Assim, por exemplo, Novo Mundo foi a expressão elaborada no século XVI para dizer que aqui não havia povos e instituições seculares. Como novo, este continente não havia chegado ainda à civilização e seus habitantes eram amentes. Em outras palavras, o Velho Mundo seria civilizado e o Novo Mundo, bárbaro. Não havia dúvida – e esses eram os termos da discussão -, o civilizado tem direitos sobre os não civilizados.

Igualmente agora, naturalizou-se chamar a Palestina de Israel. Toda a luta dos palestinos pela desocupação se torna, em consequência, contranatura. Por isso, o Hamas seria terrorista, pois ao desenvolver ações armadas contra a ocupação estaria querendo impedir que israelenses ocupem o território de… Israel!

(Na verdade, as seis organizações militares palestinas que estão coligadas neste momento em Gaza não estão agindo contra a ocupação inteira, pois não têm força para isso, mas apenas contra a ocupação de seu mar e de seu ar, que impede que Gaza tenha relações com o mundo, possa receber alimentação, remédios etc.).

Mais do que terroristas, seus membros são “animais”, diz o poder sionista; são terroristas, de extrema direita e racistas, dizem socialdemocratas e grupos menos citáveis da extrema-esquerda – esta, sim – racista.

São essas as palavras que trabalham no genocídio praticado neste momento em Gaza.
29/10/2023

II As notícias que estão chegando de Gaza…

As notícias que estão chegando de Gaza, cercada por mar, ar e terra, bombardeada durante três semanas seguidas e agora invadida desde ontem ou antes de ontem por terra com os tanques de Israel, essas imagens são imagens históricas, são imagens que se equiparam à invasão da Polônia, à divisão da Polônia entre a Rússia stalinista e a Alemanha hitlerista, à anexação da Polônia pela Alemanha nazista; se equiparam ao genocídio que o exército brasileiro fez no Paraguai, assunto que temos de ter mais conhecimento e consciência; se equiparam à anexação da Áustria, que talvez tenha sido menos violenta; mas com certeza se equiparam à Guerra Civil Espanhola e ao bombardeio de Guernica.

O que está acontecendo sob os nossos olhos, sob os olhos e a conveniência da Europa e dos Estados Unidos não é uma guerra local, uma guerra de significado restrito ao Oriente Médio, o que está acontecendo é um genocídio, uma anexação, uma tentativa de expulsar os palestinos de Gaza para o Egito, logo depois anexar a Cisjordânia, onde já há 700 mil colonos estrangeiros que constroem suas casas sob a proteção do exército genocida de Israel e expulsa palestinos de seus territórios.
A Nakba (que em árabe significa “a grande catástrofe”) de 1948, quando 800 mil palestinos foram expulsos de suas casas, de suas propriedades, continua sob nossos olhos. Toda forma de denúncia desse regime fundamentalista, desse Estado… não é o regime, não é o governo, na verdade não é o governo de Netanyahu, pois os governos trabalhistas, os governos de esquerda fizeram isso… Os kibutizim, que são fazendas “socialistas”, de esquerda, na Palestina, são cooperativas proudhonianas, de propriedade “coletiva” dos meios de produção, sobre território palestino; são experimentos socialistas sobre terra tomada à força. Então desde a esquerda sionista, que não é esquerda, é só sionista, dos kibutizim, dos trabalhistas às extremas-direitas israelenses, todos possuem uma posição colonial.

O Estado de Israel é um Estado de estrangeiros que foram da Europa e dos Estados Unidos colonizar a Palestina. Em 1948, 6% da população local era de judeus, judeus protegidos pelos árabes do antissemitismo cristão na Europa. Depois de 1948, quando foram expulsos 800 mil palestinos, chegaram 800 mil norte-americanos e europeus, que constituíram um Estado antes de tudo como um bando armado, uma horda armada (muito armada) e foi importando pessoas, um Estado sem povo. Qualquer brasileiro que se diga descendente de Isaac e Jacó, que nem sequer existiram, não existe a menor base histórica de que Isaac, Abraão e Jacó existiram; qualquer um que se diga descendente deles tem direito a ir pra Palestina. Tem direito a construir sua casa em território palestino sob proteção do exército de Israel.

Isso é um desabafo, pois há uma dor muito grande no peito, uma tristeza diante do que está acontecendo e é preciso que as pessoas falem umas com as outras, que a gente se solidarize com o povo palestino e entenda que o que está em jogo não é o povo perseguido pelo nazismo, não, os sionistas começaram a chegar na Palestina nos anos de 1920, o plano sionista de um Estado na Palestina é anterior à Shoá, anterior ao genocídio do povo judeu, e não foram os que sofreram o genocídio judeu que fundaram o Estado de Israel na Palestina, portanto, não tem nada a ver uma coisa com a outra. O que existe é uma corrente ideológica, uma ideologia tão fundamentalista, tão racista, tão supremacista quanto o nazismo.

31/10/2023

III Tecnicamente falando, é um genocídio

Estamos vendo diante dos nossos olhos um povo milenar, com uma cultura milenar, que tem suas origens em Canaã, é um dos povos cananeus, que carrega uma cultura diversa, bastante enriquecida pela experiência histórica; esse povo vem a 75 anos sofrendo uma política de GENOCÍDIO, nos termos que a Convenção da ONU define o genocídio, ou seja, a matança em massa, a destruição física e cultural de um grupo de homens, sob critérios étnicos, raciais, nacionais e religiosos. Isso que tem sido a política do Estado de Israel durante os últimos 75 anos ganhou agora a feição de uma Solução Final.

Já se discute abertamente a retirada do povo palestino de Gaza e sua transferência forçada para o Egito, o que, naturalmente, vai permitir a conclusão de um processo já em andamento em Cisjordânia, que é a transformação da Cisjordânia em território israelense, pois lá já agora há 700 mil estrangeiros norte-americanos, russos, europeus como assentados. São colonos armados e sob proteção das forças armadas israelenses construindo casas etc.

Portanto, continuando o processo de expulsão de palestinos, processo esse que começou nos anos 20, 30, mas ainda muito lentamente e que teve um marco fundamental que foi a NAKBA, a catástrofe de 1948.
Os sionistas são grupos identificados nos anos 30 e 40 por intelectuais judeus como Freud, nos anos 30, como Hannah Arendt e Einstein, nos anos 40, como grupos fascistas. Foram eles que fundaram o Estado de Israel à base de perseguição aos sindicatos de trabalhadores palestinos, à base da perseguição de comunidades camponesas nativas, indígenas, palestinas. E agora assume, de modo claro, inequívoco, o projeto de eliminação total da sociedade palestina originária. E os termos com que se discute abertamente na imprensa israelense são os termos da Solução Final, que são os termos, não à toa, com que o nazismo tratou o genocídio judaico, a tentativa do nazismo de genocídio judaico nos anos 40.

Precisamos fazer alguma coisa sobre isso! Isso tem absolutamente a ver com a nossa luta aqui contra o extermínio e o genocídio das nações indígenas que conseguiram sobreviver aqui durante cinco séculos de genocídio. Não são coisas isoladas. É a mesma lógica. Os europeus, norte-americanos, que foram lá fundar o Estado de Israel se sentiam superiores, eles eram os civilizados, ainda hoje eles se apresentam como “os” civilizados, e os palestinos como os bárbaros, como os animais, como os incultos. É com base nisso que a propaganda do Estado de Israel é feita!

02/11/2023

Emiliano Aquino é membro do Conselho Editorial de A Comuna e professor de filosofia (UECE).

Emiliano Aquino

Professor Associado da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Doutor em Filosofia (PUCSP), com Estágio Pós-Doutoral na Universidade de São Paulo (USP). Autor de *Reificação e linguagem em Guy Debord* (EdUece, 2006) e *Memória e consciência histórica* (EdUece, 2006), além de capítulos de livros e artigos de filosofia em revistas especializadas. Militante socialista independente.

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