Ao amigo Léo Nascimento
Nos tempos do cólera, eu também peguei a peste. Minha boca ressecou, tive febre, falta de ar e quase não me levantava da cama, como se a dinâmica de todos os quatro elementos de alguma maneira emperrasse: meu fogo, arrefecido; minha água, ressequida; ar, rarefeito; e terra quase não tinha, as pernas já não sustinham o corpo de um homem de trinta. Nos tempos do cólera, quando peguei a peste.
Homem nu, entre o absurdo e a revolta; homem-caranguejo, habitando a lama do meu quintal. Toda a cosmologia do mangue agora fazia sentido: urubus, lama, homens e caranguejos. Da geografia da fome à geografia da peste, da geografia da peste de volta à geografia da fome. Tomei a dose dupla do veneno e criei, e forjei, e refundi na carne, nos ossos, nos órgãos o antídoto. Homem diferente indiferente ao absurdo da peste, crendo que talvez nem a peste seja remédio suficiente para o mal-estar civilizatório no mundo.
Pela fresta da janela, no quarto em que durmo, havia sol, havia pássaros e um dia esperando num além-janela. Não sei por que, mas depois de alguns dias comecei a entender, a sentir no ar que os pássaros estavam um tanto mais alegres (ou seria eu que não os escutara antes), que as nuvens, o azul do céu, o cachorro na rua, o gato no telhado… sentia como se todos os reinos tivessem se restabelecido no tempo do cólera, quando eu também peguei a peste.
Então peguei a paleta, esforços fiz, e mais que um morcego ficou a rondar no quarto, talvez algum mané-mago, sinal de esperança; peguei a paleta, esforços fiz, e então tratei de rabiscar um tanto mais que o homem-absurdo ao qual a médica receitou para o isolamento: álcool em gel 70% e descanso.