Não sou Miles Davies, mas já dei os meus soprinhos
Comecei a aprender a manejar o meu sax no Rio. Mas nunca passei dos primeiros sopros. A vizinhança, no Leblon, não me encorajou, não gostava dos agudos que eu arrancava do meu sax -tenor.
Trouxera de New York um sax comprado em uma loja cheia de tentações para gente, como eu, proveniente do terceiro-mundo. Foi amor à primeira vista. Vi-me brilhando no Vanguard’s e no Blue Note, ombro a ombro com Miles Davis e Luiz Fernando Veríssimo.
Comprado e empacotado o instrumento (esteticamente uma escultura de rara beleza), preparei-me para encarar a alfândega no Galeão, ao pisar em solo pátrio.
O voo baixou muito cedo: o pessoal da Alfândega dormia e perdeu a multa que pesa sobre os viajantes criativos. Imaginei a cena:
“— O que o senhor vai fazer com um sax?”
No táxi, acomodei a caixa do sax sobre as pernas.
Percebi que tinha ali um problema. E agora como hei de aprender a solfejar neste instrumento de sopro? Não desanimo com pouca coisa ou desafio menor. Encontrei na Internet o anúncio de um cidadão simpático com um sedutor rastafari. Animei-me; não haveria de aprender a manejar aquele instrumento com branquelos. Sax só funciona sob os cuidados de “afro-descendente”. É da índole dos saxofones.
Por esse tempo, a universidade na qual trabalhava pusera um veículo com motorista para os meus deslocamentos entre a praia e a Tijuca.
Cuidei para não dar na vista. Se há uma classe de gente fofoqueira, conheço alguns motoristas e barbeiros.
Esfriei ao imaginar o Adélio, bom de conversa e de volante, a comentar discretamente na cantina da universidade:
“ — O homem está numa onda nova, pensa que é Pixinguinha…”
Tomei maiores cuidados para o resguardo da minha privacidade.
Na primeira aula, pedi a Adélio que me levasse para uma aula de computação. Era iniciante orgulhoso das artes do Bill Gates. Dissimulei, e apontei para a valise:
“— Comprei um computador da Sony!” E bati displicentemente na caixa que trazia a meu lado.
Ele olhou com curiosidade, com aquele ar carioca de molecagem dissimulada. Ao fim da primeira aula, com os beiços feridos do esforço libertador do sopro, entrei no carro e pedi, “vamos para a universidade”.
E ele, com ar divertido:
“ — Doutor, não se aflija, eu também toco sax, tiro uns sonzinhos legais”…
Lembrei-me da cena inesquecível de Lima Barreto, em “Triste fim de Policarpo Quaresma”. Aposentado do ministério da fazenda, Policarpo decide-se por preencher os vagares da sua aposentadoria com um violão. Naquele dia, Policarpo desce do bonde na Gamboa, com o instrumento à mão. A gente do café, num final de tarde de absoluta indolência, olha sem acreditem no que viam, a cena insólita. O velho Policarpo Quaresma a empunhar — um violão!