“Nada existe fora do texto”

Por intuição e prudência, preferi nesta sexta-feira (fatídica, de costume, são as sextas-feiras e os agostos da vida), abandonar as narrativas políticas e ignorar o o resmungar  desses roedores que rondam as sobras das nossas esperanças. O nascimento  de minha irmã querida nesta quadra abre, contudo, exceção à regra — e aqui  celebro  o evento. 

Quando iniciei as lides precoces de leitor, sob o olhar vigilante de meu avô, aprendi que o texto literário (poderia ser uma ordem-do-dia castrense ou um embargo interlocutório …) apresenta  duas vertentes complementares e esteticamente concorrentes. O estilo e a narrativa. 

Embora a escrita tenha nascido das necessidades mercantis dos persas e das suas escritas contábeis, gregos e romanos, árabes e germanos, não obrigatoriamente  nessa ordem, fizeram do texto um componente ancilar da narrativa histórica e religiosa. O estilo, tanto quanto as ideias, amoldaram-se na construção da escrita e deram-lhe forma e conteúdo. E significado social.

Sou daqueles tempos quando o autor era considerado e exaltado pelo estilo da sua escrita, da prosa que construía, nas  narrativas de registro, na crônica histórica, nas análises humanistas e na correspondência. 

Sim, a correspondência, a epistolografia, afirmou-se, desde a Idade Média, provavelmente antes,como gênero literário, que o digam o cardeal de Retz, Voltaire, Espinosa, Anatole France, alguns monarcas distintos, madame de Staël e muitos outros. O estilo e as razões da fé conviveram nos sermões e nos textos bíblicos.

Assim, a vigilância do avô voltava-se para a forma, o estilo, a construção do texto — não para questões miúdas de conceituações morais e religiosas. O que esperar de um velho Paulo Elpidio, desvalido das armaduras da fé, leitor de Voltaire, Nietzsche, Flaubert, Espinosa e Renan?

Preocupava-se, como o fazia o padre Arquimedes Bruno, com as “bolhas de sabão” da literatura menor e tudo fazia para poupar os jovens iniciantes dessas armadilhas. Até mesmo leituras registradas como iconoclastas pelo contestáveis  do zelo sobre a moral e a fé eram aceitas no seu permissivo armário de estética literária… Fui um desses agraciados iniciantes. 

Esse apreço pelo estilo e a forma da escrita, sem esquecer o conteúdo das ideias e a força da hermenêutica, distinguia, no laborioso mister da leitura,  os “classicos”, as obras ungidas e referenciadas como padrão e modelo literários.

Os clássicos eram lidos com respeito, muitas vezes em voz alta na sala de jantar, ouvidos e interesses voltados para a narrativa de personagens bem alocados no texto pela voz das suas ricas falas.

George Stein — ando às voltas com alguns textos seus que de tão sugestivos, não consigo abandoná-los —  insistia que para ele um “clássico”, na literatura, na música, nas artes e nas confrontações filosóficas, era um livro que “nos lia”. E completava: “ele nos lê, mais do que nós o lemos” (GS — Errata—,  Gallimard, Paris, 1997), p. 37).

De matriz literariamente respeitada, o “clássico” terminava por tornar-se uma referência inarredável.  De tão lido e cultivado, o “clássico” terminaria por criar uma “cultura do comentário”, como a via Steiner,  sem limites, e daria lugar a uma indústria da escrita do livro sobre o livro, do comentário sobre o comentário, da “orelha” sobre “orelhas, da diligente arte do plágio nas academias…

“Faciendi pluris libros,nullus est finis”, diz o Eclesiastes , livros sobre sobre livros, uma cadeia infinita.

Nada, entretanto, justificaria o viés pós-estruturalista, lembrado por Steiner, do “ il n’est rien en hors du texte”.

A persistência do texto não impõe, entretanto,  a conservação inalterada da sua forma original; a sua adaptação a novas formas de expressão assegura, na inelutável corrida temporal, uma nova estética formal da escrita e do texto.

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.