MUITOS HOMENS ESCULPEM MENTIRAS – Jair Cozta

Perdi a conta de quantas vezes pasmei-me diante de uma escultura. Perdi também a conta das vezes que acreditei ser uma escultura uma obra que talvez não fosse tão somente isso. Você também? Pois é…

 

A vida é cheia de mentiras. As que contamos para nós, as que surgem da nossa limitação conceitual e as que são esculpidas de forma consciente para nos guiar ao obscurantismo, à cegueira branca.

 

Experimentei algumas vivências, as quais gostaria de narrar para Andrômeda, que me acompanha e por vezes fala por mim, porque eu mesmo já não encontro minha própria voz – muitos falam por mim, sou atravessado por tantos discursos graças à fragilidade de minha personalidade limítrofe e um tanto narcísica. Chamem-na de alter ego, que eu chamo de qualquer coisa anônima. Tem sido minha única companhia. Andrômeda é uma parte de mim ou é quem me lê?

 

Meu primeiro espanto foi quando visitei Minas Gerais e conheci as obras de Aleijadinho. Eu tinha 13 anos e tal proeza se deu por um prêmio que eu ganhara por meio de um desenho meu enviado a um concurso da UNESCO – o Prêmio Escola.

 

Foi a primeira vez que vi as esculturas de Aleijadinho.  Um gênio, uma emoção, chorei. Depois descobri que algumas obras foram feitas por discípulos do famoso escultor. Não há absurdo nisso. O absurdo é a dúvida de não se saber ao certo se a obra foi feita pelo próprio Aleijadinho ou não. O absurdo nem sempre é ruim, é apenas absurdo.

 

Quando vi aquele rinoceronte-branco no Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires, eu quase não sabia o que pensar. Uma emoção com dor. Pobre animal. Era apenas uma escultura numa sala minúscula, mas era como se naquele representação daquele animal gigante houvesse toda a imagem das matanças que o levaram ao aniquilamento. À época, em 2015, só existia um único rinoceronte-branco macho vivendo no mundo. Em 2018 ele morreu e entrou oficialmente em extinção, restando apenas duas fêmeas. É natural o homem levar os outros seres, a natureza e a si próprio à completa extinção? Desde os idos primitivos, temos esculpido nosso próprio aniquilamento.

 

As formas de Sérvulo Esmeraldo que conheci espalhadas por Fortaleza, pichadas, me fizeram entender que a arte, quando sinestésica, também precisa assumir um papel orgânico e social, mesmo quando parece ir na contramão. Não sei se você conhece alguma. Uns reclamam do picho ou pixo nas obras de Esmeraldo espalhadas pela cidade, mas não entendem que a arte não deve ser pensada como intocada sempre. Esmeraldo não criou todas as suas obras para serem intocadas. Ele deve vibrar com todos os inconformados que escreveram em suas obras. Eu mesmo carrego uma foto transgressora em uma de suas esculturas. Ousei tocá-la como um semideus.

 

O imponente Cristo Redentor do Rio de Janeiro, que parece o pai relapso do Cristo miniatura de Viçosa do Ceará, foi, por muitos anos, a causa imperdoável de Marilyn Manson não ter feito um show no Brasil. Devemos perdoar o Cristo por isso? Pois é. Era tudo mentira de uma amiga com quem convivi por anos. Ela me contou  esse absurdo e eu acreditei. Era uma exímia escultora das mentiras. Era virginiana, e como a maioria dos virginianos, com certa tendência à sociopatia. Adorava mentiras – boa atriz.

 

Lembro-me do Padre Cícero de Juazeiro do Norte, santo para uns, demônio para outros. Nada mais nada menos do que um homem comum, como o fora Lampião. Este último, me faz questionar por que não tem uma estátua sua sendo visitada e cultuada. Os dois talvez tenham mais similaridades do que disparidades.

 

Sim! Sim! Como poderia esquecer-me, Andrômeda? Iracema de Messejana, nossa Manhattan cearense. Uma cidade dentro da cidade de Fortaleza – ou fora? Ah, Fortaleza… se não tivesse eu personalidade masoquista, certamente não estaria em ti há dez anos. Mas cá estou. E te amo assim, barrocamente esculpida, ou meio aleatória que nem um poema dadaísta. Lugar que me faz esculturar poemas e afetos.

 

A estátua da liberdade nunca visitei. Nem pretendo. Geralmente, quando não pretendo algo, este chega até mim. Foi assim em todas as vezes que me apaixonei. Da última vez foi tão assombroso que não tive como não sabotar. Não sei moldar a felicidade nas mãos. Talvez algumas pessoas devam mesmo ser tristes para que a palavra esperança signifique para o mundo.

 

As cabeças da ilha de Páscoa carregam o mistério da vida, você não acha? Deus me livre! Acho que se um dia eu for lá, será para morrer. Não iria em lugares como Stonehenge ou Páscoa para voltar a outro lugar. Iria para acabar ali. É tão anterior a nós que não seria justo conviver com um aquilo apoteótico. Ninguém é tão puro para carregar aquela fotografia na memória.

 

A Fonte de Duchamp foi uma grande mentira, Andrômeda. Crê nisso? O homem simplesmente roubou a ideia da suposta amiga e eu cresci acreditando que aquela obra do Dadaísmo – a mais famosa e mais subversiva -, estampada em todos os livros de arte e nos capítulos de literatura era dele. Grande vanguardista de merda ele fora! Tinha uma mulher mais genial, mais visceral do que ele. Mais uma vez um homem rouba e mata o espírito da arte feita por mulheres. Uma forma de caça às bruxas contemporânea. Se antes era a fogueira, hoje é a ideia. As mulheres, os povos negros e indígenas, as comunidades homosexuais e trans, todos roubados e mortos ideologicamente.

 

A Fonte nem é uma escultura. Está mais para uma instalação ready-made, não achas? Sei lá. Eu também não sei muito bem o que seria isso – algo já pronto e retirado do lugar comum e ressignificado em coisa outra? Só sei que o nome da autora, ou que pelo menos eu creio ser a real artista por trás daquilo, a tal R. Mutt, se chama Elsa Von Freitag-Loringhoven e morreu à míngua.  Não houve nada mais avant-garde perambulando sobre a Terra do que ela, ela vestia e respirava dadá.

 

Os homens esculpem mentiras que sustentam até quando a verdade grita. Cala-te! O que você sabe sobre a mentira?

 

Jair Cozta

Jair Cozta é Produtor cultural, artista, ativista queer e revisor de textos em Língua Portuguesa. Às vezes é do tamanho da duração do instante. Cursou Letras na UECE e atuou como produtor em diversos espaços culturais de Fortaleza.

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Jair Cozta

Jair Cozta é Produtor cultural, artista, ativista queer e revisor de textos em Língua Portuguesa. Às vezes é do tamanho da duração do instante. Cursou Letras na UECE e atuou como produtor em diversos espaços culturais de Fortaleza.