Discorrer sobre a arte e seus muitos aspectos é, também, discorrer sobre o contexto histórico na qual ela se expressa, visto ser ela parte inerente da natureza humana, portanto, sujeito e sujeita aos avanços, retrocessos, certezas e incertezas que tanto nos caracterizam.
Neste aspecto, considerando a pertinente celebração em torno do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 – importante marco, no campo das artes, de um conjunto de mudanças que viria a redefinir a sociedade brasileira no decorrer do século XX -, convém relembrar outro período em que a arte ocupou, de igual modo, papel destacado em um projeto que visava efetivar transformações estruturais no país.
Refiro-me, no caso, a Missão Artística Francesa, que literalmente desembarcou em solo brasileiro no dia 26 de março de 1816, mais precisamente no Rio de Janeiro, então capital do Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves.
Representante do Neoclassicismo – movimento artístico e cultural em profunda consonância com as grandes transformações sociais, políticas, filosóficas, econômicas e científicas ocorridas nos séculos XVIII e XIX -, sua inserção na realidade brasileira abrangia tanto os interesses da corte de D. João VI quanto dos membros da missão, idealizada e capitaneada por Joachim Lebreton, um respeitado intelectual e administrador bonapartista cujo poder decaíra junto com o do seu imperador, então (e definitivamente) exilado na inóspita e longínqua ilha de Santa Helena.
Percalços vários se interpuseram na efetiva consolidação do projeto da Missão Artística Francesa em terras brasileiras: além das adversidades no campo político – não podemos esquecer que a presença da corte portuguesa no Brasil resultava da invasão de Portugal pelo exército de Napoleão -, havia também um severo antagonismo das classes dominantes no que se refere ao reconhecimento e valorização dos artistas, dado que, à época, ainda predominavam, segundo o professor e historiador Mário Barata, dois sistemas herdados do período colonial, “…o da arte feita por escravos ou mestiços e homens humildes, em nível de artesanato mecânico, e o da arte elaborada por monges e irmãos religiosos em estrutura herdada da Idade Média e baseada no respeito da fé.”
A despeito dos obstáculos, ainda segundo Mário Barata, “O valor do artista como um homem livre numa sociedade de cunho burguês implantou-se aqui muito mais rapidamente do que teria sido de esperar – dado à realidade brasileira -, devido à vinda da Missão Francesa com sua expressão de elite (às vezes, elite revolucionária) bem ou mal compreendida, todavia progressivamente aceita pelas nossas classes dirigentes.”
Um aposto: Marshall Berman, escritor e filósofo norte-americano, ao se referir ao modernismo, defendia que a relação entre o pensamento e a arte assumia um caráter de maior clareza e fluidez em “…países relativamente avançados, onde a modernização econômica, social e tecnológica é dinâmica e próspera”, o que não acontecia em países relativamente atrasados, lugar onde o modernismo assumia um caráter “…fantástico…”, porque forçado “…a se nutrir não da realidade social, mas de fantasias, miragens, sonhos.”
De maneira similar, podemos adaptar o raciocínio de Marshall Berman em torno do modernismo ao projeto neoclássico encampado pela Missão Artística Francesa, visto ser o Brasil, de acordo com o sociólogo e literato António Candido, um lugar onde, até bem pouco tempo antes da chegada da comitiva de artistas franceses – e por determinação da própria coroa portuguesa, registre-se -, “… não havia universidades, nem tipografias, nem periódicos.” , sendo ainda uma sociedade dotada de um sistema de instrução primária que “…se limitava à formação de clérigos e ao nível que hoje chamamos secundário.”
De forma concreta, o projeto da Missão Artística Francesa resultou no decreto de criação, em 12 de agosto de 1816, da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, cujo objetivo era, segundo Joachim Lebreton, “…promover a instrução dos homens destinados aos empregos públicos e também o progresso da agricultura, mineralogia, indústria e comércio.”
Vê-se que a Missão Artística Francesa, nascida sob a égide do ideário neoclássico, que se traduzia na busca por uma pureza estética associada às formas clássicas do passado, em especial as existentes no renascimento, também possuía um DNA burguês, com notória influência dos ideais filosóficos iluministas, fincados no tripé da razão, da liberdade e da ciência.
Logo, percebe-se, a natural dificuldade em acomodar-se a um país cuja mentalidade, realidade e aspiração ainda se encontrava atrelada a uma ideologia barroca e medieva, algo que só viria a ser superado décadas depois.
Entretanto, é inequívoca a contribuição da Missão Artística Francesa – como foi a Semana de Arte Moderna – para o panorama geral brasileiro, em particular o campo das artes, cujo destino foi definitivamente transformado pelas ideias e pelo talento de Jean Baptiste Debret, Auguste-Henri-Victor Grandjean de Montigny, Auguste Marie Taunay, Charles-Simon Pradier e Marc Ferrez, entre outros.
Quanto a Joachim Lebreton, o grande ideólogo e administrador da improvável aventura de artistas franceses em terras tropicais, restou, após um processo contínuo de perseguição política promovida tanto por membros da corte portuguesa quanto francesa, retirar-se da vida pública, vindo a falecer em um sítio de sua propriedade, no Rio de Janeiro, em 1819, cerca de 2 anos antes da morte de Napoleão Bonaparte, o imperador que mudara a face do mundo e que lhe dera, anos antes, o título de Cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra, mais alta condecoração honorífica da França até os dias de hoje.
REFERÊNCIAS
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. 10ª Ed. Companhia das Letras. 1993. 360p.
CANDIDO, Antônio. O romantismo no Brasil. São Paulo. Humanitas/FFLCH. 2002. 105p.
BARATA, Mário. “Século XIX. Transição e início do século XX”, in: Walter ZANINI (org.).
LEBRETON, Joachim. Arquivo Nacional.