O “Theós” da Política numa democracia
Você já reparou que a raiz de palavras como teo–logia, teó–logo, teo–crático, teo–cêntrico – construções que se relacionam ao divino e à religiosidade – é a mesma de palavras como teo–ria; teó–rico; teo–rização, ou seja, de vocábulos relacionados ao pensamento teórico-científico? Duas visões de mundo tão radicalmente distintas que, em vários momentos da história humana foram até mesmo conflitantes, possuem etimologicamente a mesma origem!
Assim como os humanos que as criam, as palavras têm também sua própria natureza paradoxal e dialética! Mas qual a origem comum de palavras que possuem sentidos tão opostos?
O vocábulo grego, “THEÓS” (do qual derivam os dois grupos de palavras que citamos acima) se relaciona a ideia de visão. Mas não se trata unicamente do ato de distinguir os objetos uns dos outros. Theós, aqui, se trata da percepção daquilo que conecta esses objetos, do que os relaciona; da unidade do qual participam. Essa forma de entender a realidade foi inicialmente trabalhada pela religiosidade, que, através dos mitos, tentou dar sentido ao que percebemos, ou seja, tentou construir o seu Theós-religioso, ou seja, sua própria visão de mundo. Mais tarde, o Theós, quer dizer, a construção de nossas visões de mundo, não é mais procurado fora da realidade, mas a partir dela mesma. Temos o surgimento das ciências e a construção de visões de mundo a partir da racionalidade, ou o que poderíamos chamar de “Theós-racional”. Com a construção do “Theós-racional”, busca-se através do próprio ser das coisas e de suas relações recíprocas, encontrar as conexões que determinam a unidade do existente.
No caso da discussão política – pelo menos em sociedades minimamente democráticas – o theós, quer dizer, a visão de mundo, que orienta e que deve orientar as decisões políticas, relaciona-se ao “Theós-racional”, isto é, à uma visão de mundo cuja verdade se constrói através de princípios racionalmente válidos.
Aí você pode me perguntar: Por quê?
Por uma questão bem simples: afinal, como agregar pessoas de crenças e visões de mundo diferentes em ações coletivas comuns, sem que uma queira impor sua própria verdade de forma autoritária? Se a democracia é a busca em construir unidade a partir do que temos em comum, os princípios que a orientam devem ser válidos para todos, no entanto, se temos crenças diferentes, nosso comportamento religioso é orientado por princípios diferentes.
Além do fato de que os problemas políticos exigem uma compreensão estrutural da realidade que a crença religiosa não é capaz de nos oferecer. Desta forma, como podemos compreender e, ao mesmo tempo, chegar a decisões comuns, se a discussão e o debate político do que deve ser feito não se fundamentar numa ordem de verdade racional? A discussão política, numa democracia encontra, portanto, na fundamentação racional da verdade o seu elemento de universalidade.
A Subjetivação da Verdade no Debate Político
Chegamos então ao grande problema de nossa situação política atual.
Como assim?
Aí vem você de novo com mais um “como assim?”!
Deixa eu explicar…
Vimos no texto anterior que os mecanismos sociais que nos permitiam construir uma visão política com base em critérios de verdade minimamente comuns se encontram em crise. Neste sentido, a compreensão racional do debate político está comprometida. Não só a discussão política em si, mas nossas próprias noções do que é ou não verdadeiro. Estamos, pois, vivendo no período caracterizado pela subjetivação da verdade no debate político.
Achou complicado, né?
Pois vamos explicar melhor!
Vamos primeiro tentar aqui entender a verdade sobre… a própria verdade!
Parece abstrato demais?
Nem tanto.
Afinal, o que compreendemos como algo racionalmente verdadeiro?
Tradicionalmente, temos dois critérios importantes para dizer que racionalmente algo é verdadeiro ou falso. Primeiramente a verdaderacional aparece numa relação decorrespondência entre o que é dito e o objeto ao qual o discurso se refere.
Como assim?
Ora, se aponto para você em direção à uma montanha e afirmo que aquilo é um rio, facilmente você concluirá que o que eu digo é falso. Por quê? Porque o que digo não coincide com o objeto que indico. O segundo critério, é o critério da coerência lógica. Se digo a frase: “A cor de uma pasta branca é rosa!” Ela é facilmente considerada falsa, porque ela não possui nenhuma coerência. Como dizia a minha avó, a frase: “não diz coisa, com coisa!”. A verdade – tomando como referência aqui apenas a verdade racional – se constitui daquilo que conseguimos dizer sobre um objeto que, ao mesmo tempo, aparece sobre um discurso coerente e, simultaneamente, reproduz as características deste mesmo objeto.
Mas a verdade, historicamente, passa também por outra ordem de discussão e de debate que é exterior ao processo de produção do conhecimento: a do reconhecimento social.
Este é um fato que os especialistas na discussão sobre a verdade tendem a ignorar ou mesmo a subestimar. Além dos elementos internos que compõem uma verdade teórica, existe um processo em que um juízo ou um conceito, para se provar verdadeiro, precisa encontrar também validação social. Essa validação se dá em dois níveis.
O primeiro é no nível da comunidade científica, ou seja, no processo de discussão e debate entre especialistas de uma dada área do conhecimento, sobre aquilo que corresponde as verdades do seu campo de investigação. Contudo, existe outro nível de validação: o do reconhecimento do conjunto da sociabilidade.
Como assim?
Vamos tomar o exemplo drástico da pandemia e os problemas criados quando se iniciou o processo de vacinação. A partir do momento em que o País adquire as vacinas e começam as campanhas de vacinação, a aderência coletiva à vacina foi um processo lento e descontínuo. Mas por quê, já que as vacinas já haviam sido testadas e a sua eficácia foi cientificamente comprovada?
Uma vez que muita gente não reconhecia como válida a verdade científica que sancionava a eficácia das vacinas, muitas pessoas não buscaram se vacinar. Pior ainda! Estimularam que outras não se vacinassem! Não estamos falando apenas de algumas vozes discordantes, estamos falando de grupos que detinham instrumentos de comunicação de massa, ou que gozavam de certo prestígio na sociedade a ponto de serem consideradas formadoras de opinião. Estas chegaram à conclusão da ineficácia das vacinas partindo de seus próprios critérios de validação do que era verdadeiro ou falso, buscando informação em fontes orientadas pelo seu próprio gosto e preferência pessoal.
Chegou-se ao ponto de muitos dos que assumiam essa postura antivacinal acreditaremfortemente na possibilidade de transformarem-se em algum tipo de criatura reptiliana, caso tomasse vacina. Tal crença inclusive foi alimentada pelo próprio Chefe do Executivo na época. A falta doreconhecimento social da verdade científica como uma ordem de verdade válida – pelo menos no que tange à saúde pública – pelo conjunto da sociedade brasileira, teve e tem consequências graves, não apenas no caso da luta contra o vírus SARS-COVID 19.
Os movimentos antivacinais (ou simplesmente movimentos antivac) não só retardaram a erradicação do COVID-19 durante a pandemia, como contribuem hoje com a retomada de doenças que antes haviam sido erradicadas e que hoje retomam as estatísticas. Essa recusa que tem impacto diretamente na vida de centenas de milhares de pessoas se dá pelo simples fato de que estes grupos incidem no reconhecimento social da verdade científica.
O reconhecimento social de uma verdade teórica, embora não seja determinante para a produção do conhecimento é fundamental para que a própria sociabilidade possa se beneficiar deste mesmo conhecimento que é produzido. E veja-se que este problema não surge do nada, ele está relacionado às crises dos dispositivos que garantem a reprodução do conhecimento em nossa sociedade e que vimos no último texto.
Se os instrumentos que nos permitem uma percepção coletiva da verdade dentro de uma perspectiva racional se encontram comprometidos, o que nos sobra? Como passamos então a reconhecer o que entendemos ser verdade, mesmo dentro de uma perspectiva minimamente racional?
Na perca de critérios coletivos de objetividade, o que nos restam são critérios individuais e subjetivos. Regredimos ao campo do “achismo”, da percepção baseada em nossos gostos e preferências individuais. E é aqui que a verdade – no sentido daquilo que socialmente reconhecemos como verdadeiro – se torna algo subjetivo. Essa percepção coletiva da verdade através da subjetividade é absolutamente prejudicial ao exercício de uma democracia, mesmo uma ordem democrática que possa existir sob relações burguesas – que já não é muita!
Como assim?
Uma ordem de verdade que se fundamente apenas na crença, ou seja, naquilo que reconhecemos subjetivamente como verdadeiros, tende a gerar antagonismos irreconciliáveis e o princípio democrático da discussão com vista a se chegar em decisões comuns tende a se perder. A política deixa de ser o exercício da vontade coletiva e torna-se na imposição de grupos que lutam para impor sua própria ordem de verdade, seja através da manipulação dos afetos das pessoas – emulando discursos de ódio, por exemplo – seja através da imposição da violência física, agredindo aqueles que discordam.
Ora, esse é ou não é o cenário em que agora estamos?
Mas tal cenário não se desenvolve “espontaneamente”! Tal situação de coisas existe da combinação não só da ausência de elementos importantes que não estão mais tão presentes em nossa sociedade, como da ação combinada de grupos e de personalidades que lucram com este cenário.
Você quer conhecer quem são?
Pois apareça por aqui amanhã, neste mesmo bat-portal e neste mesmo bat-horário, que vamos descobrir “quem são eles e quem eles pensam que são”.
Continua!