A primeira vez que ouvi a música de Raul Seixas foi no rádio, mais precisamente no rádio do carro do meu pai, durante um passeio em um final de semana de 1973.
Lembro de ter sido imediatamente fisgado pelo ritmo e, principalmente, pela letra de “Al Capone”, cuja linha narrativa associei ao universo de Moreira da Silva, o genial “Kid Morengueira”, artista que eu descobrira em meio a diversificada coleção de discos da minha mãe.
Não que eu entendesse, do alto dos meus 7 para os 8 anos de idade, o que era imposto de renda ou onde ficava Chicago, muito menos quem havia sido Júlio César, também citado naquela música do Raul; o que eu saquei de cara foi que ali tinha alguma coisa instigante, diferente, algo que eu tinha que ouvir de novo.
Para minha alegria, o desejo logo se tornou realidade: “Al Capone” estourou nas paradas de todo o país, preenchendo o dial de ponta a ponta e sendo um dos primeiros sucessos do disco de estreia daquele novo e até então desconhecido baiano, que ainda apresentava músicas como “Ouro de Tolo”, “Metamorfose Ambulante” e “Mosca na Sopa”, essa última uma crítica feroz – e velada – à ditadura militar que havia se instalado no país desde 1964.
Quando finalmente tive o LP em mãos – por obra e graça, mais uma vez, da minha mãe, sempre super antenada com as novidades musicais -, outra grata e estimulante surpresa se fez: o título do álbum, “Krig-ah, bandolo!”, que significa “Cuidado, aí vem o inimigo!”, era uma das frases usuais de um dos meus heróis dos quadrinhos, “Tarzan”, cujas concorridas revistas em preto-e-branco produzidas pela EBAL eram ilustradas por gente como John Buscema, Joe Kubert e Burne Hogarth, verdadeiras lendas da nona arte.
Com uma criatividade acima da média e uma capacidade peculiar de ironizar e ridicularizar o já estabelecido, quebrando regras e paradigmas através da sua postura, discurso e música – que apesar de ancorada no rock dialogava profundamente com várias vertentes do cancioneiro nacional -, Raul Seixas havia chegado para ficar, de maneira que esse encontro com sua obra veio a se tornar algo corriqueiro durante o resto da minha infância e toda a minha adolescência, muitas vezes funcionando como uma espécie de introdução a uma linha de pensamento que misturava fantasia, desbunde, transgressão e filosofia, sem falar nos quadrinhos e no ainda jovem e bom rock and roll.
Quando, anos depois, descobri em mim a capacidade de também compor canções, Raul Seixas seguiu sendo uma das referências constantes. E foi pensando nessas coisas todas que um dia, ao dedilhar meu violão, me veio a ideia de prestar uma homenagem a essa figura tão importante em minha formação artística e cidadã.
Nada melhor, por óbvio, que essa homenagem se desse através de uma canção. A questão, então, passou a ser a maneira como essa canção seria estruturada.
Lembrei então de uma velha tradição da música brasileira, que consiste numa espécie de música-resposta, ou, de outra forma, da intertextualidade possível entre certas obras e autores, algo que resultou em muitos dos nossos clássicos populares, sendo notórios os que surgiram das disputas – ou “diálogos” – entre Noel Rosa e Wilson Batista.
Estabelecida a premissa, parti para a criação da composição, a qual dei o título de “Meu Amigo Raulzito”, numa possível resposta, do ponto de vista do personagem, a uma das mais celebradas canções de Raul Seixas, “Meu Amigo Pedro”.
Do ponto de vista formal, “Meu Amigo Raulzito” é uma música que incorpora propositalmente cacoetes verbais, poéticos e sonoros do universo Raulseixista, tendo sido incluída no meu primeiro álbum musical, “Jardim do Invento”, lançado em fevereiro de 2019.
Morto em 21 de agosto de 1989, Raul Santo Seixas, o Raulzito, segue vivíssimo entre aqueles que tiveram a oportunidade de conhecer seu legado artístico e existencial. E isso, definitivamente, não é para qualquer um.
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*Você pode ouvir “Meu Amigo Raulzito” através desse link: https://bit.ly/2NnqCvb