“Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? […] Oh tempos, oh costumes!”. (Marco Túlio Cícero, em PRIMEIRA CATILINÁRIA).
– Mestre, não nos espanta se a escolha já tiver sido feita. Então, agracie-nos com a revelação de quem merecerá o seu voto, embora se costume dizer ser ele secreto.
Eu tivera um sábado, ou melhor, uma semana por demais exigente. O colégio dos meus netos – dois deles são líderes de suas respectivas turmas – promovera, de segunda a quinta, atividades esportivas, artísticas, científicas e culturais, em programação tradicional que envolve todo o alunado do Fundamental II e das duas séries iniciais do Médio. São eles, os pré e adolescentes, os principais agentes do processo. São eles, os discentes, os aprendizes, que fazem acontecer. Sob a orientação e vigilância dos mestres, coordenadores e docentes, planejam, criam, produzem, fazem compras, contratam serviços, ensaiam, realizam e vibram muito com as suas conquistas. Experiências de vida prática. Competição saudável. Há quem perca, obviamente, mas isso também faz parte da vida. Aprender a perder se inclui entre os elementos básicos da formação do indivíduo. Enquanto nós, os responsáveis, nos movimentamos na retaguarda, dando suporte, apoio logístico – em especial, na gestão financeira –, e encaminhando soluções.
A folga da sexta aliviou as tensões, minimizou o cansaço. Mas o sábado não perdoou.
Logo cedo, fui às compras, atividade essencial à sobrevivência da família; do supermercado popular, de vendas no varejo e atacado, à feira no Mercado São Sebastião, em cuja área central uma meninota de cabelos negros, ondulados e longos, pele bronzeada, morena cor de jambo vestida a rigor, a voz bem postada, o rebolado bem característico, bom domínio de microfone e palco, encanta o público, gente simples, com músicas sertanejas da gema, sob acompanhamento de sons da sanfona buliçosa, desassossegada e resfolegante, do pandeiro floreado e versátil, do zabumba rufador e marcador e do triângulo tilintante e estrídulo; o grupo aparenta compor uma única família, com música de raiz a escorrer pelas veias. Sob esse encantamento, eu – matuto genuíno, alma sertaneja – ajo, com a naturalidade e a versatilidade de veterano, de bom entendedor do negócio. [Qual o preço do feijão verde? É, ‘stá razoável. Põe cinco quilos… meio a meio… metade lá pra casa, metade lá pro barzinho da esquina. E o tomate? ‘Stá em promoção? A este preço…! E da macaxeira? O cheiro verde… é na parelha? Quanto custa? E o pimentão… na unidade ou no peso? O preço ‘stá salgado… Não vou levar. Garoto, me dá uma garrafa de manteiga da terra! E meio quilo de nata fresca. Um, de queijo. Um, de paçoca.].
A tarde já começou sem a sesta preguiçosa, o soninho do pós-almoço de quase todos os dias; e a rede de varandas, tremeleando sutilmente ao sabor do vento intermitente, dessa vez não me abraçou, nem me embalou… terá sentido a minha falta? Sei não. Só sei que senti – e muito! – a falta dela. Afazeres domésticos me preencheram o tempo. Serviços de manutenção e restauração: pequenos consertos, limpezas e trocas. Ida programada ao Cantinho Maluju, que resiste ao quase abandono. Isso me entristece. Muita coisa por fazer… e fiz. Da varrição de alguns ambientes à recolha de folhas secas.
No retorno, a parada pra recomposição de energias no barzinho da esquina, em bairro de periferia. Adoro esse tipo de convivência com gente simples, modesta, que sabe com quantos paus se constrói uma jangada. E nela singra mares bravios. Haja espírito de luta! Haja fé no que há de vir! O som ambiente acalma, sossega, aquieta. O tempo parece agoniado. Nem bem o sol se recolhe por trás da cortina cor de sangue lá no horizonte estendida por mãos divinais, as trevas da noite já impõem a artificialidade das luzes que clareiam frouxamente. Um vento fresco passeia pelos vãos das ruas e remove detritos espalhados pelo asfalto carente de reforma. Pessoas alegres, sorridentes, se aconchegam em animados grupos, ao redor de mesas dispostas em área alpendrada. Bebericam e conversam e riem e vivem.
Ao chegar, um amigo – daqueles que a gente guarda no lado esquerdo do peito – intima-me a compor sua mesa, com quem já dividia com outro amigo em comum. Como aprendi a não ingerir bebida alcoólica quando necessariamente vou ter de assumir uma direção veicular, esquivo-me ao convite de compartilhar com eles das generosas e fluidas e convidativas oferendas a Baco. Restrinjo o meu saboreio a um ou dois copos de Coca-cola, com pedras de gelo e rodelas de limão. É quando ele me instiga a tornar pública a minha intenção de voto. E eu, que já sou conhecido como quem fala pelos cotovelos, em nada poupo a minha oralidade:
– Meus gentis amigos, ora lhes rogo que me permitam tomar de empréstimo um pouco de seus preciosos tempos. Considero-me um eleitor politizado, exigente, rigoroso – mormente quando se trata de cargos majoritários – presidente, governador; não me arrimo em corporativismos, em ideologismos e, muito menos, em fanatismos. Não empunho bandeiras de quaisquer matizes, não me encanto com bravatas politiqueiras prenhes de oportunismos, não me conquistam promessas invariavelmente interesseiras. Neste momento, todo candidato é bom, é santo, é povo. Cuido de conhecer o terreno em que piso. Evito afoitar-me. Meu voto é decidido às vésperas do ato crucial… depois, vou dispor de muito mais tempo para me arrepender. Quiçá, não! No curso do processo, procedo à eliminação de postulações que em nada, nada mesmo, me convencem. Sempre procuro tornar útil o meu voto “a fórceps”. Já errei, sim, não por falta de critério responsável, mas por falta de opção que, ao fim e ao cabo, pudesse legitimar a minha escolha. Como podem perceber, só me permito, por enquanto, oferecer-lhes declaração de não-voto. Lógico que isso restringe as possibilidades…
– Mesmo porque, professor, dos treze candidatos que se nos oferecem à escolha, mais da metade podemos descartar à primeira vista, não é?!
– Sim. Natural que seja. Embora alguns aparentem ser de bom feitio. Falta-lhes tutano, couraça, vivência.
– É o caso de Amoedo, do Novo…
– Façamos agora, amigos, uma leitura razoável, embora sem muito aprofundamento…
– Bravo! Isso mesmo!
– Perfunc…?! E o que isso significa, amigos meus?
– No caso, o mesmo que superficial. Uma leitura perfunctória, superficial, do cenário atual, com pesquisas mais recentes que já consideram o Haddad como, pelas circunstâncias, substituto natural do Lula. E o que vemos? A grosso modo, a mesma disposição de expectativas das últimas semanas, ou seja, a clara formação de três níveis, três patamares bem distintos. Numa escala estatística em pontos percentuais e ajustes cientificamente admitidos, a parte mais alta – um terço do universo analisável – se reserva a um Bolsonaro de eleitorado bem definido e com viés de crescimento incapaz, a meu ver, de sugerir vitória já no embate inaugural; deve manter-se na faixa de trinta e poucos por cento dos votos válidos, o que, dada a pulverização da parte mais considerável das intenções de voto, garantirá ao candidato a presença no segundo turno. Na parte intermediária, algo em torno de sessenta por cento dos votos válidos será renhidamente disputados por quatro postulantes – Alckmin, Ciro, Haddad e Marina, em ordem alfabética. Daí sairá o adversário de Bolsonaro para a segunda etapa do jogo eleitoral. A evolução de cada um, nos dias vindouros, vai depender de quem mais se beneficiar do espólio petista, pós-cerceamento definitivo da candidatura lulista. Não há quem se arrisque em assegurar que todos os declarados eleitores de Lula necessariamente destinem seus votos para quem ele indicar, até mesmo pelo perfil político de Haddad, um “poste” que acredita ter luz própria.
– Assim, pelos meus cálculos, resta cerca de dez por cento de votos válidos…
– Isso mesmo. Disputam-nos oito desvalidos, sem a menor chance de coisa alguma, desde que tomaram a decisão de candidatar-se por razões que ficam bem aquém do que poderia ser o acalentado sonho de sentar-se na cadeira de comando de um país continental, rico em recursos naturais, nem tanto em recursos humanos políticos.
– Pelo até aqui dito, mestre, entendo que o universo posto à sua escolha reduz-se a cinco…
– A quatro, amigo!
– Como assim, professor!
– É nesse ponto em que se assenta a minha declaração de não-voto. Se o descarte dos oito decorre da minha firme adesão ao “voto útil”, sirvo-me do fenômeno da “rejeição” para assinalar que jamais sufragarei o nome de Jair Messias Bolsonaro.
– Por quê?! Podemos saber?
– Lógico. Trata-se de um meteoro, um fenômeno cadente, calcário em desatino, sem brilho, com alta capacidade de destruição, com carisma passageiro, efêmero, fugaz, que se mantém basicamente pela indignação de quem sofreu/sofre, ao desamparo, os trágicos efeitos da insegurança pública, filha da irremovível desigualdade social, de quem os detentores de poder fogem como o diabo foge da cruz. Com perfil que sugeriria conhecimento e liderança, revela-o, entretanto, incompetente, medíocre, histriônico, fanfarrão. É um Collor precariamente recriado. Lá, no governo do “aquilo roxo”, a bala salvadora seria – e foi, mas ele errou o alvo… Incompetente! – disparada contra o monstro da inflação. Aqui, agora, o “tiroteio ao alvo” tem como pano de fundo a violência. Lá e cá, uma única certeza: nós pagaremos a conta. E mais ainda: o fato de haver galgado o oficialato militar indicaria, por si só, uma distinguida formação cidadã. O pífio desempenho congressual, no curso de quase três décadas, o posicionamento questionável pela intolerância em face de temas polêmicos e o discurso inconsequente e desconexo põem em xeque até o basilar conceito de cidadania. E ameaçam a minha sôfrega inteligência. Nele, não!
– Então, será no Ciro?
– Ou no Haddad…
– Tudo é possível. Tudo é possível, amigos. Um abraço. Até mais ver.
Em casa, celebro o fim de mais um dia ao sabor de umas cervejinhas estupidamente geladas. Atendo, assim, aos reclamos do espírito. Resisto, por enquanto, ao silencioso apelo da rede de varandas. A que me quedarei, com certeza.
Nota do autor: Texto produzido entre os dias 9 e 11 do fluente mês e somente agora trazido à lume.