Propor a meritocracia, numa sociedade que ainda não venceu o preconceito, seria só uma incoerência, se não fosse uma tremenda desfaçatez. Mas é sempre assim: os mais agraciados com os frutos do erário são os que mais reclamam do tímido processo de inclusão social. Agem como os gatos que rosnam, enquanto comem, para poderem comer sozinhos.
Estava em déficit com essa temática. Há dias, pensei em escrever um artigo com dados, números, pesquisas e tal…, mas estes já existem às miríades por aí…. Resolvi, enfim, fazê-lo por meio de episódios, como motes de reflexão. A partir destes, o leitor poderá rememorar outros tantos, diluídos na rotina, adormecidos na memória. O meu escopo é mais provocar do que informar.
Intertextualizando com João Cabral de Melo Neto: um galo, quando canta, induz ao canto outros tantos galos. E juntos tecem uma manhã.
Foi a partir do encontro de dois cavalheiros que, pela primeira vez, atentei para o significado da palavra MERITOCRACIA. E veja-se que já faz muito tempo… O ano era 1983. Os sertanejos padecíamos os efeitos de uma terrível seca. Em função dela, fui prestar serviço pela SUDENE, nas dependências do 3° BEC, em Picos-PI.
Na grande sala de projetos de engenharia, deu-se o inusitado e pitoresco encontro entre o capitão Juarez e o cabo Esmeraldino. O que os unia, além da farda, era uma velha amizade dos primeiros anos de quartel… O que os distanciava eram as patentes.
O capitão Juarez era um homem negro, alto, forte e elegante… O peitoral a estufar a farda … o brilho do coturno e da fivela do cinto dava conta do seu intento de fazer boa figura entre seus pares.
Cabo Esmeraldino acabara de chegar do campo, um campo hostil, quase inóspito, onde não havia o refrigério de uma nuvem no céu, de uma sombra de árvore…Era só o sol e o pó da caatinga a lhe crestar a pele e embaçar os olhos, naquela faina medonha a correr de obra em obra, no volante de uma velha picape.
Ao encontrar Juarez, após a devida continência, Esmeraldino abriu os braços numa exclamação: Olá meu capitão! Quanto tempo! … O senhor se lembra daquelas nossas sofridas expedições?!…
E seguiu enumerando episódios de acampamentos em montanhas… histórias dolorosas da vida em comum.
O Inusitado da resposta do capitão me faz guardar aquela cena até hoje… Juarez mirou Esmeraldino e, em tom paternal, aconselhou-o:
“Oh Esmeraldino! Toda vez que te encontro, é sempre a mesma cantilena! Tu vives atrelado ao passado, de olho no retrovisor, é por isso que não avanças… E ainda filosofou que remoer tristezas é sofrer duas vezes… e tal.
Se foi um conselho ou um tripúdio, não sei. As palavras sugerem que sim; o tom dizia que não… Até porque o interlocutor não me pareceu melindrado… ou talvez já viesse calejado de respostas atravessadas.
Foi em volta desse episódio que alguém mencionou a palavra “meritocracia”, como legitimadora do destino das pessoas. Ora, quem “rala” mais, quem troca o sono pelo conhecimento vai receber o conforto do ar-condicionado, ganhar bem, andar sempre na grife e fazer boa figura na cidade; quem negligencia vai colher o sol e o pó da caatinga.
Ocorre que Deus não dispôs aos homens a mesma Escada de Jacó. Os caminhos são diferentes; as trajetórias, diversas … E todos são necessários e dignos nas suas escolhas, desde que legais… O que seria dos aflitos da seca sem Esmeraldino?…
Os vocábulos abstratos, ligados ao campo semântico da fé, do poder, dos valores… exercem muita força sobre o agir dos homens.
É o caso do termo MERITOCRACIA. Que palavra bem-nascida!… Quem ousaria desmerecer a sua fidalguia?!… Pois que vem do conúbio santo: “merito+cracia” (poder do mérito). Se considerássemos um “reino das palavras”, tal sugeriu Drummond, ela seria uma rainha despótica, ultraconservadora a ordenar: “Deixe tudo como está!”
Com efeito, é a carta na manga para calar, na fonte, o discurso de mobilidade social que não inclua os privilégios dos bem-nascidos… Ora, quem ousaria refutar o poder do mérito, embutido na sua etimologia? … Qualquer tentativa de relativizar calha como prêmio à indolência, ao desleixo.
A vida, nos escritórios, nos centros acadêmicos, parece normal. E não é cômodo sair do aconchego para ver como vai a vida do outro. Por isso, muitos intelectuais preferem abstrair sobre a realidade, absortos na fumaça de um charuto…. Os políticos, por sua vez, recebem milhões em verbas para visitarem as tais bases, mas lá só aparecem em dia de festa, quando a realidade se amolda às suas ilustres presenças. Por isso passam ao largo de cenas como esta:
À cena, então:
Já passava do meio dia, quando adentrei a saleta do metalúrgico, um ambiente sufocante atulhado de tralhas. A tv ligada a todo volume, num programa policial… O locutor berrava a plenos pulmões… sensacionalista, exibia cenas de violência para atrair a audiência mórbida.
Pior: de todas as casas emanava-se o mesmo som, o que gerava uma massa sonora indistinta, perturbadora… A custo pude ouvir da dona da casa que esperasse… O marido não tardaria.
De onde estava, pude ver, no cômodo contíguo, um garotinho “preto de tão pobre”, (ali naquele Haiti, para ficar na canção de Caetano e Gil), com um lápis a escrever, num velho caderno, algo que eu deduzi ser sua tarefa escolar.
Voltei para casa sob o impacto daquele cenário… Não deixei de refletir que, em Teresina, estão algumas das mais competitivas escolas particulares do país. Quando lecionava nos preparatórios para concursos e vestibulares, as minhas salas eram uma babel de imigrantes… Todos vinham atraídos pelo lema, (difundindo nos estados vizinhos): “Quer passar num concurso? Mate um teresinense.” Aliás, temos aqui a mais bem ranqueada escola do Brasil: o Instituto Dom Barreto.
Agora, voltemos à MERITOCRACIA e queiramos (desavergonhados) que o seu manto cubra igualmente o menino do Alto da Ressurreição… escola pública, com seu lápis e caderno, aturdido num barulho impeditivo, pais analfabetos … e os garotos dos bairros nobres, matriculados no Dom Barreto, Colégio das Irmãs; filhos de empresários, médicos e altos burocratas… com curso de inglês, professores particulares, tablets em vez de lápis, aulas-passeio e tudo o mais…
Estão errados? … Longe disso! O equívoco reside em se admitir que essas discrepâncias se perpetuem e, depois requerer resultados iguais, quando todo o percurso fora diverso.
As frases sábias, guardo-as para sempre…Li, faz muitos anos, de um agricultor mineiro:
“Acho que a educação pros pobres é dum jeito como ela não é.”
– Esse homem, com uma educação formal, poderia ter sido o que fora o seu conterrâneo Guimarães Rosa. A sutileza da “pegada” é a mesma.
Felizmente, vivemos uma cruzada, como jamais vista contra todas as formas de preconceito. De sorte que racistas, misóginas, homofóbicos têm estado em apuros. Entretanto o amálgama que acentua todas as formas de discriminação é a pobreza (aporofobia). Ela é o dique, o tapume no caminho da inserção social. No Brasil ninguém barra uma criança numa boa escola, um cliente num restaurante, senão pela falta de meios.
As pessoas trans, as mulheres, os negros ricos e famosos geralmente são aplaudidos. As manifestações homofóbicas, misóginas e racistas, quando ocorrem, vêm em função da inveja, de um sentimento medíocre de inferioridade. Mas é evidente que tudo sai pelo pior, quando os signos da exclusão se acumulam na mesma pessoa.
Já era madrugada, em frente ao portão do albergue, uma bela criatura feminina (a chorar) implorava abrigo. De fato, era uma garota trans. O vigilante, impassível, não cedia…. Parei o carro e negociei…. Saí dali prenhe de sensações…. Ocorreu-me que aquela jovem era rejeitada em casa, apedrejada, violentada na rua; refuga num abrigo e maldita numa igreja, se igreja houvesse…. Enfim, um ser depositário de todo desprezo, de todas as fúrias….
Quanto tempo levaremos para vermos meninas, como aquela, exercerem em plenitude a sua humanidade? … Como inseri-la numa sociedade meritocrática, se ainda lhe sonegamos o direito de ir e vir? …
Conheço sobremaneira a luta para auferir o tal lugar ao sol, quando os NÃOS boicotam os SINS. Conheci o estar na roça, analfabeto, aos treze anos. Dali para cidade e estudar no supletivo (antiga versão do EJA), que funcionava como um recado velado aos pobres e matutos: “Contentem-se com isso. Daí vocês não passam.”
Era toda uma des(organização) que justificava a intuição daquele agricultor genial sobre a educação para os pobres… Jogos do Flamengo, da Seleção, chuva, queda de energia, morte de autoridades, finais de novela, comícios políticos… todos para casa… tudo era pretexto consentido para isto: “Nós fazemos de conta que te ensinamos e tu fazes de conta que aprendes.”
Depois, prestar vestibular e seguir carreira no magistério…. Poderia eu proclamar os meus singelos méritos. Mas, antes é preciso dizer que recebi o obséquio e a empatia de muita gente. Talvez por não trazer visíveis os anátemas da rejeição.
Sou um homem hétero e, seguindo uma certa escala de branquismo à brasileira. Sou “brasileiramente” branco, apesar de trazer, nas feições e no sangue, as marcas do Brasil profundo. De sorte que, se coetâneo fosse do tempo da infâmia, quando, na relação entre os homens, cabia o intermédio do lombo e do açoite, talvez coubesse a mim a primazia deste.
Não sei se essas características pessoais me abriram portas. Mas não ABRIR é muito diferente de não FECHAR.
A meritocracia só teria sentido, como regra, se as pessoas fossem todas iguais e tivessem as mesmas aspirações… Pressupostos que inviabilizariam a vida em sociedade.
Precisamos abrir leques de oportunidades para que as pessoas sigam suas vocações, exercitem suas potencialidades. A sociedade necessita tanto de um Juarez, quanto de um Esmeraldino ou Macedo …
O que não se pode é, em nome da tal MERITOCRACIA, ocultar o cardápio das possibilidades, em função da cor da pele, da opção sexual e, essencialmente, da pobreza, essa coisa paralisante, estática. Adaptando uma imagem de Raul Seixas, “como as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar…”