Nesses tempos obscuros de negação da ciência, desprezo pela vida e aos padrões civilizatórios, a sociedade brasileira é violentada por múltiplas ações, em todas as suas maneiras de operar. Uma delas, a mais grave, consiste na propagação da mentira por todos os meios e modalidades.
A Humanidade toda está inteirada do fato de que mentir é declarar uma falsidade com a intenção de enganar ou induzir a disseminação de informações, seja em horário nobre via rede de televisão, seja pelas mídias sociais que “deram voz aos idiotas”, no dizer de Umberto Eco, por alguém que tenta se exibir como sendo o que nunca foi, não é e nunca fez o que afirma ter feito.
A prática da impostura, atualmente, no Brasil, em certos estratos da sociedade, ditos letrados, politizados e urbanos – na expressão do Prof. Dr. Rui Martinho Rodrigues (UFC) – é de tal ordem, que nos induz a entender se haver estabelecido no País uma seita, nominada pelo seu “líder”, com asugestiva e astuciosa denominação de “Brasil acima de tudo, minha família acima de todos”.
O resultado de toda essa violência guiada pela falsidade já nos legou mais de 300 mil mortos, e, para os que ainda preservam intacto o uso da razão, (felizmente, nessa condição temos a maioria), desde já peço vênia para adverti-los de que esse genocídio não resulta desta pandemia, mas reverbera como resultado da incúria e da prática cotidiana da tentativa de enganar por parte dos eugênicos do desgoverno.
Aqui se impõe uma breve reflexão sobre a definição da mentira em seus diversos contextos, para oferecer ao leitor os principais conceitos desse vocábulo. Para isso, é igualmente necessária a delimitação do seu significado, uma vez que, na “última Flor do Lácio” (Bilac), algumas palavras são ambíguas, têm o caráter da anfibologia – uma particularidade da Língua Portuguesa – de modo que detêm mais de um significado.
Ao se analisar sua etimologia, vê-se que mentira e mentir procedem do latim (do Lácio) “mentire”, que quer dizer “mentir”, “imaginar”, “inventar”, de “mens”, “mentis”. “Mens”, “mentis”, é termo geral da raiz “men” – pensar – e que designa, por oposição a “corpus”, […] o princípio pensante, a atividade de pensar. (LAFER, 1995, p.321).
Ninguém discorda de que mentir é querer enganar; há uma perversidade inata na mentira, e é algo extremamente negativo. Vale o registro de que no Português – língua polissêmica por excelência – existem muitos termos para designar a mentira, dentre os quais burla, aleive, falsidade, ludibrio, charlatanice, impostura, mendacidade, engodo, tapeação, engano, embuste, logro, calúnia, endrômina, lorota e inverdade.
Nesta semana, o “líder” da seita já referida mais uma vez atentou contra a inteligência coletiva, ao exercer com sua peculiar desfaçatez e índole criminosa todos os significados da mentira, merecendo um sonoro “panelaço” em pelo menos 16 estados.
Assistir, diariamente, pelos meios de comunicação, à prática nefasta da mentira por parte de quem jurou guardar, cumprir e fazer cumprir a Constituição, e ainda observar o cometimento de todos os crimes de perjuro que vêm sendo praticados, não só atenta contra o Estado–Nação, e nos agride a todos, como nos rouba a esperança; e o mais desesperador é saber que ainda exista quem o aplauda por isso, e não são poucos, enquanto milhares de pessoas estão sendo abandonadas até a morte.
Ante tão inusitada realidade, é imperioso perguntar: quanto tempo ainda teremos que esperar para que vossas excelências, deputados e senadores, cumpram com o papel constitucional que lhes cabe?
Conforme a definição geral de mentira, o mentiroso sabe a verdade (se não toda a verdade, pelo menos a verdade daquilo que pensa), afirma o que ele quer dizer, sabendo a diferença entre aquilo que pensa e aquilo que diz. Logo, ele sabe que mente, pois há uma contradição consciente entre o pensamento e sua manifestação. Assim assegura Lisiane Sabala Blans, em sua dissertação de mestrado, análise da mentira em Agostinho. (2012).
Não é ocioso repetir o conhecido fato, por parte de todas as pessoas de boa vontade (não padecentes de dupla ignorância, e não acometidas pela patologia da idiotização e atrofiamento mental, que atingem um contingente expressivo dos pertencentes à seita mencionada), que a mentira é um tema objeto de estudos de Filosofia da Moral.
Em razão de a mentira constituir uma realidade frequente no cotidiano das pessoas e instituições, e o seu grande impacto nas relações coletivas, uma reflexão filosófica sobre a mentira adquire grande importância. Sua exata função, entretanto, nas relações interpessoais e institucionais, a caracterização e sua legitimidade são ainda um desafio para os filósofos em suas reflexões não triviais. A discussão sobre o que é veraz e o que se faz mentiroso é perene e acompanha os filósofos desde os primórdios como afirma autora já referida.
Para Agostinho de Hipona e Kant de Königsberg, por exemplo, a mentira é uma prática imoral, que deve ser rechaçada sob qualquer pretexto, entretanto deve ser dito que entre os filósofos existem vozes discordantes, dentre eles Platão de Atenas e Benjamin Constant de Lausanne, que admitem exceções, desde que justificadas pelo contexto. “Desde o início da filosofia houve opiniões discordantes sobre saber se mentir é sempre admissível, pois, se ser veraz não requer explicação, ser mendaz o exige”. Na tradição cristã e na Filosofia Agostiniana, a mentira é imoral, e não admite exceção. (Análise da Mentira em Agostinho – 2012)
Como nos ensina Fiódor Dostoiévisck de Moscou, em “Os Irmãos Karamázov”, […] “O principal é não mentir para si mesmo. Quem mente para si mesmo e dá ouvidos à própria mentira chega a um ponto em que não distingue nenhuma verdade nem em si, nem nos outros e, portanto, passa a desrespeitar a si mesmo e aos demais. Sem respeitar ninguém, deixa de amar e, sem ter amor, para se ocupar e se distrair entrega-se a paixões e a prazeres grosseiros e acaba na total bestialidade em seus vícios, e tudo isso movido pela contínua mentira para os outros e para si mesmo.” Não é preciso dizer mais…!
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