Médicos e mezinheiros

A fachada da grande farmácia renova-me as lembranças daquele episódio… Pitoresco? …. Até poderia ser, se infeliz não fosse…

O ano era o tenebroso 2021… com um vírus devorando vidas e a agonia de uma vacina que não vinha…. Ao zanzar pela Internet, deparo-me com um renomado médico, alertando para a alternativa das vitaminas. Na hipótese do contágio, o alvitre era fortalecer o organismo para a luta.

A farmácia era o caminho…. Uma dessas farmácias grandes (que engoliram as pequenas), com jeitão de lojas de conveniência, que vendem de tudo, inclusive remédio…

Ao balcão, solícito e solerte, o rapazinho moreno:
– Pois não, senhor!…
– Por favor, um polivitamínico de A a Z… – Ele vem com duas caixas diferentes, uma em cada mão. Entregou-me a de vitamina e a outra, ele bateu no balcão, com tal energia, que me assustou…. Seus olhos, acima da máscara, cresceram em cima de mim e, como um jogador que acabara de encontrar a carta mágica, olhou-me fixo e resoluto:
– Para covid é isso aqui: – tiro e queda!…
– Não estou com covid, – ponderei…
– Mas o senhor pode tomar para prevenir!…
– Que remédio é esse? … Ele me respondeu quase escandindo as sílabas: in-ver-mec-ti-na!…
– O que diz a bula?
– Remédio para vermes e piolhos! Mas ótimo para covid!

Senti uma força retórica na palavra “piolhos”, com se ele me quisesse fazer pensar:
“Ora, se a invermectina se atreve a piolho, um bicho grande, que coça e chupa sangue, o que não faria com um mísero micro-organismos que nem sequer vida própria tem?”… Sem demonstrar enfado… respondi que a vitamina me bastava…
O rumo daquela prosa não era legal…. Eu poderia despejar nele uma enxurrada de ironias injustas… (Não é costume meu lançar vitupérios às pessoas) …. De mais a mais, seria injusto, porque ele era apenas um trabalhador que recebera (de um patrão ganancioso) a incumbência de vender aquelas feitiçarias. Não caberia, pois, voltar para casa, ferido na sua estima de bom vendedor que, de fato era, por um cliente melindrado.

Com efeito, ele era competente até mesmo para vender aquela fraude… E talvez não ganhasse nada a mais por aquilo… Os comerciantes costumam estabelecer metas e o não cumprimento é, por vezes, o caminho reto para a rua…

Todas as perguntas que não fiz para poupá-lo e para poupar-me do inconveniente de criar crispações, em ambiente público, eu faria ao negacionista-mor desta nação e estenderia também ao presidente do Conselho Federal de Medicina, que endossara, com silêncio cúmplice, aquela estranha vadiagem:
– Então, senhores, é razoável imaginar que o coronavírus seja da mesma natureza de vermes e piolhos?…
– É lícito receitar a um paciente, com insuficiência respiratória, febre e tosse, um remédio para lombriga?

O discurso pronto vai na direção de quê: – “Qualquer remédio remedeia o irremediável”. …. Como se se tratasse de um chá, de uma mezinha inocente que, se bem não produz; mal não faz…
Essa era a origem da minha aflição, do meu quase desespero…. Assistir (impotente) às pessoas levarem, para uso contínuo, aquela coisa tóxica, na boa-fé de estarem imunizadas…

Onde estavam as entidades médicas e farmacêuticas, que deixaram prosperar aquela infâmia?…

Ah, mas elas nada poderiam fazer, porque a autoridade máxima do país estava a correr atrás de emas com caixas de cloroquina…
Mas que berrassem, ao menos. O berro de indignação é livre, onde quer que exista um resto de democracia… “Muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las pra trás” … Ensinou o Mestre Carpina a Severino Retirante…

Os dadaístas berraram, em Zurique, durante a Primeira Guerra…. Não pararam o conflito, mas imortalizaram-se numa vanguarda modernista…

Posso imaginar a decepção de muitos médicos abnegados, a desmaiarem de cansaço nas UTIs, (com os rostos vincados pelas máscaras permanentes), ao presenciarem a inação de suas entidades de classe…
Numa análise debochada do futebol, costumam-se eleger os craques e os pés-de-rato. Os senhores, como entidade, foram os pés-de-rato…. Pois, por falta de independência ideológica, vacilaram, diante de um discurso oficial anticientífico, mas cada um que avalie os seus pecados e lamba suas feridas!…
Numa hipótese surreal…Se ao coronavírus fosse dado o poder de escolha, ele olharia o planisfério e, com um dedinho malévolo, apontaria para o Brasil e diria: – “É para lá que eu vou!”… Lá está a minha Pasárgada! (com a vênia de Manoel Bandeira) … Lá encontrarei perdigotos em trânsito, na urgência dos carnavais… dos campeonatos de futebol… As máscaras são meras caretas na cara dos “caretas”… Assessórios arrancáveis das caras das crianças… Lá as vacinas trazem a marca da besta; … cloroquina, invermectina, água e até feijões são antivirais…
Com efeito, o vírus encontrou no Brasil uma gente tola e à mercê … muito fértil em teorias simplórias … uma Terra Prometida aos pilantras…

Por aqui, tivemos um quê de malandragem, digno do ubíquo homem da cobra…. De fato, eram muitos, mas a prosápia era de um só…. Quem não se lembra deles?… Abria-se uma roda no centro das praças. E, enquanto procrastinavam a aparição da serpente, iam apregoando banha de peixe-boi, de cascavel, óleo de baleia, sebo de carneiro capado… E tantos outros unguentos exóticos…

O apóstolo Valdemiro Santiago aventurou-se no ramo dos feijões milagrosos. Porém o insucesso de crítica deixou-o deveras estomagado… O apóstolo jura que não eram feijões, e prometeu processar Lula pela infâmia! …

Ele diz trabalhar com sementes mais nobres…. Afinal, quem daria mil reais por uma unidade de legume tão vulgar?…
Se uma virtuosa colheita bíblica é cem por um… imagine-se quão rentável seria a messe de Valdemiro?!… Dado tratar-se de uma planta que viceja, onde quer que haja uma nesga de sol, em fundo de quintal!…
Mas tudo virou meme, inda mais por aquela má fama de produzir “ventosidade”, como reclamou Gregório de Matos, ao deplorar a dieta colonial à base de feijão com farinha.

O fato é que para o bem do bolso e dá saúde dos fiéis, o negócio não vingou…
Mão Santa, prefeito de Parnaíba, cuja alcunha vem da fama de bom médico, na sua audaciosa ignorância (para ficar nele mesmo), sugeriu água, como se o vírus fosse um punhado de farinha seca presa na garganta!…

O Brasil é um campo fértil para charlatães, mezinheiros, curandeiros, cachimbeiros… A falta de uma cultura científica deixou o povo à mercê da natureza e de suas crenças, em busca de alívio para suas dores físicas e psicológicas.

A ausência de médicos e de medicamentos levava (ainda leva) a alternativas estranhas e, por vezes, humilhantes… Quanto mais repugnante e desafiante era o “remédio”, mais eficácia prometia… É como se a cura viesse na medida do sacrifício.

Imagine-se: cocô de cachorro para sarampo; leite de jumenta para tosse braba; terra de formiga para coceira; sarro de cachimbo nos umbigos dos bebês; mocotó de boi para os depressivos…

Sem contar com uma profusão de rezas: espinhela caída, quebranto é até frieira!…

E as inúmeras raízes, folhas, sementes e cascas… E as promessas com os santos… (alguns com especialidades): Santa Luzia para os olhos, São Bento para episódios com cobra, Santa Bárbara para os raios… São Francisco para todos os males…
Na minha infância, as frieiras não perdoavam meninos descalços nos currais… O jeito era rezar… E quem rezava era Mãe Preta…. Ela era a rezadeira e a parteira de toda a gente…

Eu e meu irmão saíamos pulando poças, cercas e córregos, até a casa de Mãe Preta…. De longe, a fumaça da cozinha sobre a palha da casa… E no aproximar, a venerável cabeça branca…
– Bença, Mãe Preta!…
– Deus te dê fortuna! …. Já vêm de lá as frieirinhas de Mãe Preta rezar!…
A porta lateral dava para a roça de mandioca… E de lá vinha ela com os ramos de muçambê…. Durante o ritual, havíamos de responder perguntas…. Os ramos haviam de murchar, como um sinal de haverem absorvido a doença para si…. Pronto!… Estávamos curados! …Mas as micoses coçavam gostoso, nos punhos das redes!
Abro um parêntese para dizer que o Brasil urbano não respeita o Brasil rural. Por isso, o eterno êxodo.

Diante desse estado de aflição, há ainda quem sonegue a presença de médicos, no interior do Brasil. Há comunidades onde não existe nem o “Mais” nem “Menos” médico, porque não existe médico algum… Sob pretexto de repúdio ideológico, cria-se, de fato, uma famigerada reserva de mão de obra, a obstar a chegada de profissionais estrangeiros aonde os nacionais não querem ir.

Sempre que me vem aquela cena de médicos cubanos, acoados por brasileiros, renova em mim um desconcertante constrangimento… O zelo patriótico não acolhe a xenofobia vulgar nem o territorialismo canino… E não combina com o penar à míngua de médico…
Portugueses, negros e índios, munidos de suas crenças e valores, adentraram as profundezas do Brasil e criaram, por assim dizer, um sincretismo medicinal.
Tudo muito compreensível, dado a falta de meios… O que não se pode conceber é um discurso anticientífico, diante de uma pandemia… Gente totalmente desautorizada, para tal, opinar sobre remédios e vacinas. É o rapazinho da farmácia receitar-me uma droga violenta, como quem recomenda um suco de graviola…. É o cúmulo da falsificação de cartões de vacina!

Será que existiria mesmo um lugar tão especial para um vírus como o Brasil?
O país de Rodrigues Alves, Osvaldo Cruz e Zé Gotinha vê as vacinas encalharem nos postos, à espera de braços que as honrem!… Para quem já foi referência global, hoje, o Brasil abraça-se insanamente à Venezuela na rabeira da cobertura vacinal, na América do Sul!…
Se o abismo era a Venezuela, eis que quase chegaram lá…

Esqueceram-se da sábia frase: “Não olhe para o abismo que o abismo olha para você”…

Espero que as distopias vividas, nos últimos anos, não se perpetuem, como uma “característica nacional do Brasil”, como profetizou Joaquim Nabuco sobre a escravidão… E que a saúde chegue às nossas “vastas solidões” do campo!…
– (Como é prazeroso dialogar com Nabuco!…).

Os meus amigos hão de dizer: “Ora, ora… O Macedo a falar de medicina!… Logo ele que suava frio, diante de uma simples prova de ciências!

Não… não estou a tratar de medicina…. Não tenho cancha para isso …. Estou apenas a escrever uma crônica…. De tal sorte kafkiana… que minha netinha, ao lê-la (espero), em breve, haverá de dizer: “Não!…eu não nasci nesse tempo! …. Não sou uma infanta medieval! …O vovô viajou na maionese!”…

Ao meu amigo Camilo:
Não tivemos sapatos, tênis, bikes e videogames, mas recolhemos retalhos de vida que tecem histórias.
Macedo

Francisco das Chagas Oliveira Macedo

Francisco das Chagas Oliveira Macedo (Prof. Macedo) nasceu em Picos, sertão do Piauí, em 1960. Graduado em Letras pela UFPI, leciona língua portuguesa e literatura, nas redes pública e privada, em Teresina.

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