As salas de espera da sobriedade, surrela. “Surrela”, ela quer que eu lhe diga no ouvido. “Me chama de surrela”, ela diz, “me chama de uma coisa bem suja”. Ela puxa as minhas mão pra dentro das suas roupas como se. Como se esperasse que eu fosse capaz de capturar alguma coisa selvagem. Não sei o que fazer, mas. Mas não preciso saber nada, a não ser que. Que não há mais esperança, ao menos não. Ao menos não enquanto eu estiver preso nesse tempo estagnado.
Quem engarrafou o vento? Quem engarrafou todas as coisas?
Já não suporto o olhar malicioso dos outros. Todo o mundo aqui sabe da minha vida ou. Ou de mais coisas do que eu mesmo sei. Sabem de coisas que não aconteceram porque. Porque eles mesmos inventaram. Homens que eu nunca vi me perguntam sobre. Sobre mulheres que eu nem sequer conheço, e. E sempre insinuam que. Que eu estou escondendo o jogo. Eu mesmo não sei que jogo é esse. Que jogo é esse que nunca me ensinaram a jogar.
O que eles querem é me manter em eterna desvantagem covarde. “Eu preciso que você durma na minha cama.” Não sabem vencer de outra forma. “Eu também quero, mas não posso.” Ou talvez nem se trate de um jogo que contenha coisas como. Como vitória e derrota. “Preciso que alguém em quem confio fique do meu lado enquanto eu durmo.” Se trata apenas de controlar. “Eu não posso. Não tenho essa liberdade.” O jogo sem sentido dos entediados.
Os prisioneiros de uma cidade condenada à pequenez. “Quem vai ter, então?” Eles poderiam. Eles poderiam ao menos. Eles poderiam. Poderiam ao menos desejar. Ao menos desejar alguma coisa. Eles poderiam ao menos desejar alguma coisa, como. Como querer ser melhores do que são. “Posso pedir pra alguém entrar na tua casa, escondida. Quem você prefere?” Mas quanto trabalho daria ser um pouco melhor do que se é? “Eu não sei quem é mais ninguém, e não sei nem onde moro.” Essa maldade sem objetivo e de fraco poder de alcance deve mesmo parecer mais cômoda. “Você mora aqui.”
Talvez sejam felizes desse jeito. “Mas eu não sei em que casa. Sempre me perco quando ando. Como uma cidade pequena pode mudar tanto?” As grandes felicidades são coisas tolas que aparecem em propagandas de televisão que custam caro.
“Impressão. Talvez você deva beber menos.” Vão dizer que são porcos porque uma bela feiticeira fez isso com eles, mas não vão dizer o quanto eles mesmos gostam de ser porcos, que nunca houve uma feiticeira porque porcos sempre foram, e que, e que é assim, suinamente, que eles se vingam de todas as coisas que não têm porque custaria esforço.
Beber menos, ela diz. Nem imagina quanto tempo faz que já não bebo. Preciso me manter sóbrio. Tenho medo constante de que me cheguem de uma vez as mil notícias atrasadas da morte dos amigos do passado. A província é um trançado por demais simples: poucas avenidas não muito longas, ruas que se guiam por elas, terrenos baldios e coisas que não sabemos se estão sendo lentamente construídas ou lentamente demolidas.
Não sei o que faço aqui nem o que faço do outro lado. Não importa onde eu esteja, sempre quero sair e não consigo. Parece que estou o tempo todo muito atrasado. Isso não pode se repetir. Ou não pode durar. Mas é somente como a vida. Se não for a própria vida.
Vão dizer que eu me aproveitei da situação, que desejava o lugar onde nada acontece porque, porque eu mesmo nunca gostei de trabalhar mas, mas vão dizer sobretudo que eu me aproveitei do amor súbito e inexplicável que, que ela passou a me devotar sem que eu pedisse nada, o pequeno deus sem vocação, um boneco enfeitiçado a quem se pode chamar de amor. Uma história pro analista. Uma história que o analista não ia entender.
Ela finge que entende ou, ou acha que entende porque, porque talvez ela entenda melhor do que eu ou, ou talvez nenhum de nós dois entenda. Ela aceita. Aceita que o significado final do que eu digo seja fuga (sf. retirada precipitada e rápida, ato ou efeito de fugir, composição musical polifônica baseada em imitação) e me oferece a possibilidade de outras mulheres como se. Como seu o meu problema fosse estar entediado com ela. Porque ela não sabe que quando a gente se encontra escondido fingindo que ninguém sabe disso é como se eu tivesse um caso dentro de um pesadelo.
“Todos os dias eu assino sem ler um monte de documentos. Sei que não vai adiantar me recusar. Ninguém vai me deixar ir embora sem responsabilidades. Um dia pode ser que tudo desabe sobre mim, mas por enquanto eu prefiro não saber exatamente o que me ameaça.”
“Eu quero que você fique. Mas você pode ir embora. Os documentos que você assina são burocracia comum.”
“Como é que eu posso ir embora? Sempre chego atrasado. O ônibus já tem saído. E o que dizem ser o último da linha na verdade nunca passa.”
“Talvez você chegue cedo demais.”
“Mas o que importa isso também? Eu nunca tenho dinheiro no bolso pra pagar a passagem.”
A parada do ônibus intermunicipal parece abandonada há décadas. Fica mergulhada num dos canaviais meio selvagens que margeiam a própria estrada a perder de vista em ambas as direções.
Homens de bermuda, sempre os mesmos, olham pra mim fingindo cumplicidade. Devem falar mal de mim pelas costas. Estão sempre contando moedas pra comprar mais uma garrafa. Sempre um deles traz junto a velha bola desgastada pro jogo que afinal nunca acontece.
“Você tem dinheiro o bastante pra viver. Eu queria que fosse rico como merece, mas eu não posso fazer nada.”
“Onde está o meu dinheiro?”
“Deve estar em algum lugar. Ninguém nunca vê você gastando com nada. Às vezes eu também penso que você guarda o dinheiro no colchão. As pessoas dizem isso de você.”
“Você acha que eu sou doido?”
“Acho, mas é você que eu quero que me chame de surrela.”
São corredores de alguma instituição pública. Não sei se é um hospital, uma escola ou uma, uma prefeitura. Há carteiras escolares e cadeiras de rodas e balanças, quadros-negros, avisos do Estado sobre a necessidade de fazer denúncias, a necessidade de votas conscientemente, a necessidade de não se ter preconceitos. Talvez eu trabalhe aqui. Não há mais ninguém mas, mas tenho a lembrança de ainda uma outra mulher, uma outra mulher que, que se interessava por mim.
Antigas tribos canibais ofereciam mulheres pras vítimas que estivessem cevando. Essas amantes tinham papel destacado nas tribos e se orgulhavam muito do seu papel social.
Às noites sou um estranho tipo de vagabundo respeitado. As pessoas fingem me cumprimentar porque. Me conhecem. Eu não conheço ninguém e, e não participo da socialização dessas pessoas. Não me admiram nem me invejam pela relação que todos conhecem, conhecem porque, porque não adianta mesmo esconder. Mesmo que não vejam nada sempre sabem de tudo. O que percebem de mim é que sou deslocado como o prisioneiro de guerra que vai se tornar refeição. O interesse deles por mim sempre vai ser uma coisa mais objetiva e material que eles não vão dizer o que é porque. Porque não é problema meu saber.
Parece que eles sabem que eu nunca trago dinheiro comigo. Sem dinheiro perco absolutamente todas as chances de ser amplamente interessante, apesar, apesar de duas mulheres me quererem ao ponto de serem capazes de me dividir. Se uma delas não acabar me matando algum dia. Odeio todos esses grilos. Queria pisar em cada um e sempre que vejo algum tento pisar em cima como se não desse mais que um passo distraído mas, mas os insetos têm sensores, são coisas reativas, pulam, me obrigam a desviar o pé por impulso e no fim sempre fogem. O estranho é que o melhor é mesmo que sejam muitos. Uma multidão de grilos é coisa difícil de aturar, mas um único grilo sozinho é simplesmente insuportável.
Tanto tempo sem ler e sem escrever. Me pergunto se basta um ato fundador pra que a coisa se concretize, mesmo que nunca mais o ato se repita, como acontece com o crime. Basta um assassinato pra que o indivíduo se torne um assassino, como se isso colocasse o criminoso como o destruidor potencial de todas as coisas, pois pode ultrapassar a fronteira de matar um semelhante e perceber que do outro lado, não, nada existe, nada além de um miasma antigo de surrela. O que acontece com o escritor, esse animal obcecado que tem mais coisas contra si do que o assassino, um animal que de tão obcecado mesmo pode nem sequer conseguir ir adiante, de tão emperrado pela própria paixão? Os outros não dirão que você é escritor antes que publique, mas ter publicado, não importa como, já significa que nas sombras o sujeito já se tornou essa coisa.
A publicação, esse ato oficial como a impressão de um dcmento, mostra aos outros essa verdade íntima, e desde aí o escritor se torna uma puta de rua com consciência de classe — espero que as putas de rua não se ofendam com a comparação.
Parece que sempre acabou de chover e que todo mundo está de férias.
“Um dia eu vou ser como você?”
“Eu não sei como eu sou nem porque você quer ser isso que você acha que eu sou.”
“Queria ter tanta leitura quanto você.”
“Li muito na juventude. Hoje já quase não leio.”
“Mas ainda lê alguma coisa e já leu bastante. O suficiente pra não precisar ter mais pressa.”
“Isso é mérito do leitor com os livros. É algo bem democrático.”
“Também queria ser vista como alguém que veio de fora.”
“Isso cansa. Mas é fácil. Basta sair uma vez do seu lugar de origem. A partir de então, pra onde você for, e até mesmo se voltar à sua terra natal, você será sempre alguém que veio de fora.”
Não sei quantos livros da biblioteca dei ou vendi tão barato que foi quase como se desse. Nem todos eu tinha lido até o fim e alguns eu não tinha nem começado. Não estou preocupado em fazer reposições. Ler, apesar de ser um impulso, podia ser que piorasse esse estado letárgico em que tenho sempre sono e nunca consigo dormir ou. Ou durmo tão profundamente que não sou capaz de lembrar depois, embora.
Embora eu sabia que mesmo desse lado em algum momento, não é possível, eu devo dormir. Do mesmo jeito que, que em algum momento devo comer. Coisa de que também não lembro. Sei que como porque permaneço vivo e porque nem sempre a fome dói.
Pois da sensação de fome eu não esqueço.
A casa é pequena. O lado é outro agora. As casas vizinhas são iguais. Algumas só envelhecem mais rápido e pior. Alguma passou algum tempo abandonada e foi visitada por invasores que se embriagaram, se drogaram, quebraram o que puderam e defecaram o chão e as paredes. Tudo no escuro de uma casa de energia cortada. Há mais grilos no mato da sarjeta do que qualquer obstinado conseguiria matar, mas a cidade é maior. Os olhos ardem no escuro. Não quero estar desse lado. Não quero voltar pro outro lado. Acho que tive saudades, horas antes. Isso contaminou tudo. Ainda há livros nas estantes, misturados com antigas anotações, e coisas que também ninguém mais usa. Quatro pessoas. Meus pais. Minha irmã, que prefere dormir cedo. E eu, que em algum momento tive que voltar.
Além desse estranho que a voz dos adultos autorizou estar aqui, coisa que nunca tinha acontecido antes. Ele espera na cadeira desconjuntada. A sala. Onde armamos nossas redes. Índios. A minha fica bem ao lado da pilha dos exemplares do romance publicado, novidade de ontem, oitocentos e poucos exemplares que não consegui escoar. Ele sabe que eu não durmo e pensa que eu não sei que ele sabe. Finge acreditar no seu próprio fingimento. E tenta invadir a minha rede. Sinto o seu hálito perto do rosto e a barba, mal feita como a minha, no meu ombro, e a energia das suas mãos imantadas flutuando.
Ele volta a se sentar numa cadeira desconjuntada e depois ataca novamente. O mesmo ritual. Alguma coisa na imposição de suas mãos deve ser capaz de paralisar.
Sua última investida não é contra a minha rede. Percebo o vulto erguendo o véu e luto contra a paralisia do corpo. Preciso reagir. Só o que consigo é dizer com a voz pesada de quem acordasse de um longo coma:
— Quem é você?
Quando a pergunta certa, eu soube depois, era quem de nós dois realmente sonhava.
As outras três pessoas, os familiares, despertaram todas, e sem que eu precisasse perguntar nada me certificaram de que não havia mais ninguém conosco, e fariam o mesmo durante todas as noites como já fizeram nas anteriores.Dirão que não há mais ninguém aqui. A resposta, eu sei, nunca será convincente.
MARANGUAPE. CAUCAIA. MARACANAÚ