Manias?! Quem não as tem? Quanto a mim, confesso, desde já, que as tenho. Muitas, várias. Umas absurdas, ilógicas; outras nem tanto. Algumas inconfessáveis, das quais, tão logo as cometo – elas que de mim zombam e até desdenham porque sempre me fogem ao controle –, não raramente me enrubesço, sinto afoguear-me o rosto e eriçar-me os pelos dos braços. Outras há que me embalam o quase septuagenário corpo, me enternecem a venturosa alma, me apaziguam o irrequieto espírito.
Parodiando o cancioneiro popular, convém aqui proclamar que, dentre as manias que eu tenho, uma é gostar de viver. Não nutro a menor ideia de como serei quando tudo isso for passado. Não dou ouvidos nem me apego a nenhuma versão futurista em qualquer dos planos. Não romantizo a minha religiosidade. Eis outra mania. Que me perdoem os que creem. Sou seguidor mesmo é do “carpe diem”. Aqui e agora. Sem negar, entretanto, até pela amplidão, expressividade e complexidade do Universo e a beleza harmônica da Natureza, a existência de um Ser supremo na condução de tudo e de todos. Quanto aos sonhos, não os renego, nem os condeno. Até os poetizo. Mas, se não se realizam, admito que logo se desbotem, se dissipem, esvaneçam. Outros virão, certamente.
Uma mania, no âmbito do futebol, é-me de todo inexplicável: em jogos do Vozão – esteja eu na cômoda poltrona de minha acolhedora casa, os olhos grudados na tela da tevê de quarenta e poucas polegadas, transmissão em “hight definition”, no saboreio delicioso de uma subzero ao ponto; esteja eu no desconforto da cimentada arquibancada do conservador estádio, ou ainda, na cadeira dobrável da vanguardista arena, em meio à multidão que se irmana por um só objetivo: a vitória do clube que ama –, se cruzo as pernas, sempre isso faço com a planta do pé apontando para onde o meu time ataca. É algo tão automático que lembra o ponteiro imanizado da bússola indicando sempre o Norte. Há quem rotule esse comportamento como mera superstição. Discordo. É mania, mesmo!
Outra, no âmbito da leitura, é-me mais que interessante: jornais e revistas sempre os leio de trás pra frente, ou seja, da última para a primeira página; isso se dá, certamente, desde os idos tempos da revista O Cruzeiro, cujos raros exemplares até mim chegavam com significativo atraso (coisa de anos!), expostos em balcões de bodegas, de mercearias, destinados a embrulhar algumas mercadorias ali postas à venda, mais especificamente os sabões em barra, os pregos, os parafusos e porcas e arruelas, além de outros produtos também grosseiros. A defasagem temporal dos assuntos ali tratados afetava profundamente o seu valor atrativo, estimulante. Com efeito, já não despertavam em mim a mais mínima das atenções. Mas eu me aprazia lendo a Última Página, seção ricamente preenchida com textos escritos pela cearense Rachel de Queiroz, como, por exemplo, a História da beata, de cujo parágrafo introdutório duas frases iniciais consegui recuperar e ora transcrevo literalmente, mantida, inclusive, a acentuação do ditongo aberto do vocábulo “idéia”, extinta por ato praticado na mais recente reforma ortográfica da língua portuguesa (foi-se o acento agudo, mas ficou a pronúncia aberta, além da própria “ideia”): “A gente, de noite, com insônia, tem uma idéia. Aliás, não é bem isso, porque a idéia não brota de repente na nossa cabeça, resulta de velhas lembranças, conceitos, problemas, conflitos, imaginações que você ruminava desde anos e que naquela noite se viram numa idéia organizada em figuras e palavras.” Trata-se de texto da edição de 10 de outubro de 1959, a que tive acesso uns cinco ou seis anos depois. Pois é. Naquelas priscas eras, o tempo era “amigo da onça”, acredite se quiser.
E por falar em Rachel, releio sempre – no sítio do Projeto Releituras – a sua Crônica nº 1, com a qual inaugurou sua longeva participação na O Cruzeiro, até que cerraram, em julho de 1975, as portas dessa consagrada revista, carioca de nascença e produção, mas nacional de circulação. Valho-me de um de seus últimos parágrafos para dar robustez a estas mal traçadas linhas, dada a atualidade da mensagem que encerra, embora conste da longínqua edição de 1º de dezembro de 1945, quando rede ou era de dormir ou de pescar e social remetia necessariamente à classe elitizada, dominante. Ei-lo: “Vez por outra hei de lhe desagradar, haveremos de divergir; ninguém é perfeito neste mundo e não sou eu que vá encobrir meus senões. Tenho as minhas opiniões obstinadas — você tem pelo menos cem mil opiniões diferentes — há, pois, muito pé para discordância.” Assino embaixo.
Nos tempos de assinante de Veja – algumas décadas do século passado, alguns anos do século em curso –, deleitava-me, antes de qualquer percurso pelo que se continha em suas edições semanais, com artigos veiculados na última página da revista e assinados pelo mestre Roberto Pompeu de Toledo, autor, por exemplo, do Pode ser sim, Tiririca (Veja, edição de 23 de agosto de 2010), cujo parágrafo de fechamento ora me permito tomar como referência: “Por enquanto ficamos com Tiririca. Tiririca é um cantor, ou ator, ou humorista (?!), ou seja lá o que for, que se apresenta como candidato a deputado federal em São Paulo. Ele diz, em seu comercial: ‘Que faz um deputado federal? Na realidade eu não sei. Mas vote em mim que eu te conto’. De boné, peruca e roupa que lembra um arlequim da roça, Tiririca termina com o slogan ‘Pior do que está não fica. Vote em Tiririca’. Fica sim, amigo Tiririca. Já ficou.”, e pelo experiente J. R. (José Roberto) Guzzo, para quem “Todo brasileiro de olhos abertos para o que está acontecendo no país em geral, e na sua própria vida em particular, sabe muito bem que a coisa está preta.” (Veja, edição de 22 de abril de 2014).
Mais recentemente, mudei-me, de mala e cuia, para a também semanal Época e logo tornei-me leitor assíduo da articulista Ruth Aquino que sempre preencheu, com reconhecida qualidade, o espaço de fechamento da revista e, na edição de 20 de março de 2017, assinou o texto “Se morrer, faz parte”, em cujo último parágrafo, reportando-se à reforma da Previdência – crucial e impopular já naquela época – e ressaltando o criticável “modus operandi” dos congressistas, a quem (infelizmente, assinalo) compete encaminhar as soluções para os graves problemas que nos afligem, escreve: “Não se dá crédito a uma casta com tantos crimes nas costas e tantos privilégios fiscais e vitalícios. Manifestos e manifestações já exigiram redução de 87 senadores para 54 e de 513 deputados para 386. Um projeto sem chance de ir a plenário, mesmo com nome, sobrenome e endereço do autor.” Há quem possa ora argumentar: as coisas mudaram. Sinceramente, nisso não creio. E bater, sem dó nem piedade, nos políticos tupiniquins – todos eles, sem exceção – também se inclui no meu peculiar rol de manias. Uma mania cidadã, convenhamos.
Daí, paciente leitora ou leitor, evoluí para a abordagem antecipada das frases derradeiras de romances ou textos mais extensos, como pretendendo abreviar o desfecho da trama ou buscando estímulo para a jornada que, já de si, mostra-se longa, carecedora de fôlego. Desde, por exemplo, o “Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia. [Infinito]”, do mineiro “inventor de línguas” João Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas, até, também por exemplo, o “Então abriu passagem uma jovem enfermeira, que se debruçou sobre meu tetravô, tomou suas mãos, soprou alguma coisa em seu ouvido e com isso o apaziguou. Depois passou de leve os dedos sobre suas pálpebras, e cobriu com o lençol seu outrora belo rosto.”, do carioca que um dia rogou “Pai, afasta de mim este cálice!” e noutro apelou “Chame o ladrão! Chame o ladrão!”, o genial letrista Chico Buarque, em Leite derramado, a mania se fez recorrente. Não me lembro de exceções que confirmem a regra. O agir assim é que, na verdade, constrói em mim a regra. E regra não se discute, cumpre-se.
Ora, este texto tem um fim em si próprio? Perguntam-me os dois únicos botões de minha verde-escuro camisa polo que ora me agasalha. Certamente sim, respondo. Embora, complemento, propósito haja para além do que até aqui nele me expresso e, por extensão, através dele me revelo. Acho até que eles sorriem; não sei bem se por satisfação ou desdém.
Na dúvida, disponho-me a explicar.
A última edição da já citada revista Época, datada de 1º de julho, cujo exemplar de assinante me foi entregue na manhã desse domingo, traz, na seção de abertura (pós-editorial) – Personagens da semana –, matéria a meu ver até então improvável, sob o título Os ultrarricos e os impostos. De imediato, ocorre-me a sensação de que o autor Rodrigo Castro cuidaria ali de privilégios inatacáveis de exclusivo usufruto dos multimilionários tupiniquins, protegidos por relações espúrias mantidas com os poderes pátrios. Desinteresso-me, de pronto e por razões óbvias. Mas a mania me leva para os períodos de conclusão do texto: “Na frase que encerra a carta, a mensagem aos futuros governantes é clara e direta: ‘Avancem na ideia de nos taxar um pouco mais.’” Só então sinto o despertar da curiosidade até então indolente, impassível, apática. Assim, espreito as dezoito faces estampadas em fotos em preto-e-branco, numa composição que bem reflete a beleza da vida ricamente vivida, sem preocupações de qualquer ordem, sob a proteção do poder constituído; quase todas sorridentes e todas naturalmente saudáveis, jubilosas. Também pudera: são bilionários americanos que – e aí me atinge um misto de estupefação e incredulidade – formalmente pedem, em defesa do emprego, do ambiente e da saúde, para pagar mais impostos. Custa-me crer, adoráveis leitoras e leitores, que isso seja verdade. Ricos pedirem para pagar mais imposto… Só se forem americanos… Brasileiros jamais fariam isso… Nem um deles!
E, aí, a velha mania me fez ler todo o texto. E, assim, reavivar na memória o projeto de redução da carga tributária então incidente sobre patrimônios de bilionários e corporações, que Trump e o seu partido aprovaram em 2017, cumprindo promessa de campanha. [Cumprir promessa de campanha consiste, a rigor, em faca de dois gumes, sempre mais afiada do lado benéfico aos que a bancam, que lhe dão sustentação financeira, numa também perigosa versão do “toma lá, dá cá”.]. E, assim, reiterar meu escárnio, meu desapreço aos congressistas brasileiros que, se presentemente se debruçam sobre o projeto de reforma previdenciária, cujo alvo é a patuleia, o desprotegido contribuinte, de quem subtrairá recursos para suprir a quebradeira resultante de desvios, concessões, perdões, negociatas, enfim, de gestões temerárias, irresponsáveis, jamais demonstraram, desde a Carta Magna de 1988 – há mais de três décadas, portanto –, o menor interesse em regulamentar regra constitucional que admite a taxação das grandes fortunas (art. 153, inciso VII). E não precisa ser entendido de finanças públicas para admitir que a eventual criação, por ato legislativo nada complexo, de contribuição temporária – até que as contas da seguridade social se normalizassem –, sobre a riqueza dos multimilionários e bilionários brasileiros serviria, no mínimo, como demonstração de que todos navegamos no mesmo barco, que, de há muito, vem fazendo água e só não afunda de vez por obra e graça do Espírito Santo [Deus é brasileiro! Será?!], situação que nos impõe estar dispostos a resolver o problema.
Ah, a matéria revela dois dados que me revoltam: 1) “No topo da pirâmide, o percentual da renda isenta e não tributada sobre o total de rendimentos bateu em 70%.” Ou seja, os mais ricos contribuem bem menos do que seria justo. Enquanto o cidadão com rendimentos do trabalho assalariado equivalentes a dois salários mínimos mensais recebe a indesejada visita do faminto leão do imposto de renda. 2) “Cinco brasileiros tinham [no ano passado] riqueza igual à da metade da população do país.” Ou seja, de mais de cem milhões de brasileiros. Arre! Pô! Cascalho!
Para concluir, se você, transigente leitora ou leitor, dispôs-se a acompanhar-me nessa longa caminhada de escritura e leitura, permita-me abusar de sua paciência e, assim, partilhar o parágrafo final da contribuição historiográfica assinada pelo mecenas, escritor e poeta paulista Paulo da Silva Prado e intitulada Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira (São Paulo, 1926-1928): “Para o revoltado o estado de coisas presente é intolerável, e o esforço de sua ação possível irá até a destruição violenta de tudo que ele condena. O revolucionário, porém, como construtor de uma nova ordem é por sua vez um otimista que ainda acredita, pelo progresso natural do homem, numa melhoria em relação ao presente. É o que me faz encerrar estas páginas com um pensamento de reconforto: a confiança no futuro, que não pode ser pior do que o passado.” Assino embaixo.
Alfim, dobro-me à singeleza do senso comum, para quem a esperança é a última que morre. Apesar dos pesares.