Lula e a China

“Qualquer um que tenha o poder de fazer-lhe crer em idiotices, tem o poder de fazer-lhe cometer injustiças. “

Voltaire

O que nos serve de exemplo diz muito sobre o que somos. Lula acaba de eleger a China como exemplo a ser seguido pelo Brasil; assim, estamos feitos…

Lula disse:

“…Eu sonhava muito com os Brics. Eu pensava muito grande na minha relação com a China. Com a Índia, com a Rússia e com a África do Sul. Eu achava que a gente deveria ter construído uma parceria estratégica. Para que a gente, possuindo metade da humanidade, a gente não ficasse dependendo da política do dólar. A gente não precisasse do dólar para fazer nosso comércio exterior. Para que a gente fizesse parceria no desenvolvimento tecnológico. A gente estava fazendo parceria com a China para desenvolver nossos foguetes para vigiar nossos países, nosso planeta.”.

… Eu trabalhei muito com o HU Jintao (ex-Presidente da China) a necessidade de uma relação sul-sul; de não ficar dependendo do Norte como somos dependentes.

… A China é um exemplo de desenvolvimento para o mundo. Espero que outros países aprendam a lição para que a gente possa ser mais rico, mais forte e ter distribuição de riqueza.”

A se inferir do texto supracitado, Lula, que é social democrata burguês, contraditoriamente, elogia o país de um partido único, que tem um Estado ditatorial forte, armamentista, que toma decisões de cima para baixo e que obriga a todos ao cumprimento de suas iluminadas decisões de cúpula!!!

O discurso de Lula acima transcrito em pequena parte (não o que foi falsificado pelos conservadores, de modo desonesto, como eles sempre agem) é um deleite para a direita, que assim pode rotulá-lo como aspirante a ditador estatizante; e é um deleite para a esquerda keynesiana, que é capitalista e deseja um estado forte estatizante.

Nada mais doutrinariamente confuso do que esta pequena parte do discurso que acima transcrevemos, e retirado da voz inconfundível do protagonista acima indicado em entrevista concedida ao jornal chinês Guancho.
Trata-se de um pensar que mistura eleições burguesas de 2022 com uma ditadura de partido único onde não há eleições;
– e que toma como exemplo a ser seguido pelo mundo o governo chinês, que cala a voz dos dissidentes e que se diz comunista, mas é o país que na prática desrespeita os direitos humanos e persegue opositores, além de praticar o capitalismo mais selvagem do planeta!!!

Ou a China capitalista e que se diz comunista nunca leu Marx ou o falsifica. Prefiro ficar com a segunda hipótese, porque por lá tem gente que certamente conseguiu (mesmo que clandestinamente) ler os Grundrisse e O Capital, e sabe que tudo que se faz por lá é a antítese do ideário preconizado por Marx, ou seja, a emancipação do trabalhador pela via da sua própria superação enquanto tal, e o fim do móvel da escravizações destes, a forma-valor (dinheiro e mercadorias).

Os emancipacionistas querem o fim do capitalismo, não a sua pretensamente benéfica exacerbação. Mas Lula apenas demonstra que é apenas capitalista; o que já sabemos desde há muito, e como se houvesse possibilidade de capitalismo bonzinho e produtor de riqueza equânime por todo o mundo a ser distribuída.

Ele não é ingênuo; é apenas um oportunista que quer se passar por bem intencionado…
Mas a mistureba doutrinária do Lula tem uma explicação: oportunismo eleitoral conjugado com sede de poder político e submissão ao capital.

A China é o exemplo mais bem acabado de tudo o que os emancipacionistas combatem e NÃO DESEJAM, senão vejamos:

a) não queremos a exploração do trabalho abstrato como se faz na China, onde os salários aviltantes e as condições de trabalho são próprias ao trabalho escravo, e que é o que permite que a China ganhe a concorrência nos mercados capitalistas mundiais e deseje ser hegemônica neste sentido e prática;

b) somos contra os partidos políticos e, principalmente, quando há um partido único, detentor do pretenso saber popular traduzido como vontade de uma cúpula dirigente;

c) somos contra a estrutura de poder verticalizado, próprio aos modelos políticos liberais ou keynesianos, todos capitalistas na essência, ainda que com modelos políticos fechados ou abertos, estatizantes ou privatizantes;

d) como marxistas da crítica da economia política que somos, não queremos a existência e continuidade das categorias capitalistas, principalmente porque somos contra a existência do escravista trabalho abstrato produtor de valor econômico e monetário e fonte primária da exploração capitalista (O PT e o Partido Comunista Chinês desejam a permanência do trabalhador produtor de valor, explorado, fonte de seus discursos políticos falsamente protetores, e sem querer jamais superá-lo);

e) não queremos uma sociedade que produz alguns poucos milhões de bilionários e mais de 1 bilhão de escravos do trabalho abstrato, como ocorre na China;

f) não queremos mercado, mercadoria (crítica fundamental de Marx), Estado forte (como quer Lula) ou fraco (como quer Paulo Guedes), direito burguês, nem a forma-valor, os partidos políticos e a política, bem como não queremos bolsas de valores, criptomoedas, empreiteiras, corrupção, etc.;

g) não queremos emissão de gás carbônico na atmosfera como faz a China, segundo maior poluidor do Planeta (e nem quem desmata a Amazônia, como Boçalnaro, o ignaro);

h) não queremos uma força militar nacional, principalmente numerosa como a da China, a maior do Planeta;

i) não queremos a dissociação de gênero e nem queremos que as mulheres se tornem seres capitalistas igualdadas às condições dos homens, ou seja, que todos sejam trabalhadores escravos do capital;

j) não queremos eleições burguesas, e nem eleições internas e dentro de um partido único, nas quais apenas se escolhe entre aquilo que já foi escolhido previamente, no primeiro caso, e um comitê central eleitor, no segundo caso, todos condicionando o governante eleito ao juramento e cumprimento constitucional restringente e obediente à ordem capitalista;

k) discordamos da opressão estatal chinesa a Hong Kong, que contraria a livre determinação dos povos;

l) sabemos que a China, ao invés do sucesso apregoado por Lula, tem uma dívida pública e privada impagável (já denunciada como tal pelo FMI), e que a cada dia se torna insuportável graças aos juros internacionais que lhe são cobrados, e que levará a China e todo o sistema financeiro internacional à falência tão logo se evidencie a inevitável queda acentuada do seu PIB, já em declínio continuado;

m) não queremos vender nossas matérias primas (o ferro e outro minerais) e nossos alimentos para a China e comprar manufaturados com valor agregado e advindos de trabalho escravo;

n) não queremos o nacionalismo capitalista chinês beligerante com seus vizinhos (igualmente beligerantes) como Índia e Japão, e que apoia governos ditatoriais como o de Vladimir Putin da Rússia, que está de olho na Ucrânia; etc., etc., etc…
Basta. Faltariam letras para cada tópico de discordância do que representa a China para o pensamento emancipacionista histórico da humanidade, no qual a solidariedade transnacional (e não internacional, impossível de ocorrer enquanto existirem nações e capitalismo) e partilha do saber e da ajuda mútua para a produção social por todo o mundo sejam a pedra de toque;
– diferentemente do centralismo chinês, queremos que sejam as comunidades, organizadas em estruturas jurídicas compatíveis com o senso superior de justiça e de um fazer e decidir horizontalizado, aquelas que têm o comando decisório sobre suas próprias questões, e que sejam as beneficiárias, quando acertarem, ou as prejudicadas, quando errarem (e com capacidade de autocorreção), mas sempre por suas próprias decisões;
– estamos convencidos de que nas comunidades como as que almejamos as virtudes humanas prevalecerão sobre a crueldade fratricida e competitiva causada pelo capitalismo;
– queremos comunidades nas quais os recursos naturais sejam explorados de formas sustentáveis e renováveis, e que a vida seja preservada cotidianamente e livres da guerra fratricida decorrente da absurda e irracional luta por hegemonia política e econômica, como hoje ocorre;
– na qual o ócio produtivo, possibilitado pelo tempo disponível advindo do saber e da divisão equânime do esforço aplicado à produção coletiva dos bens de consumo e serviços, possam estimular a criatividade artística e esportiva sem a mercadoria espetáculo.
Não, Lula, o capitalismo predador e escravista da China não nos serve como exemplo, e ao invés dos nos alinharmos ao modelo chinês, devemos criticá-lo, simplesmente porque ele se baseia na xploração do ser humano.

A cada dia que ouço você falar, tenho satisfação (não digo orgulho porque é presunçoso) de ter sido expulso do PT (que ajudei a fundar quando a minha ingenuidade de 28 anos assim o permitia) quando fui indicado a candidato às eleições de 1988 em Fortaleza na sucessão da Prefeita Maria Luíza (também expulsa juntamente com o seu grupo), sob o argumento inconsistente de ser um candidato do bolso do colete desta última.
Boçalnaro, o ignaro, e seu Ministro das Relações Exteriores recém-demitido criticaram a China para agradar Donald Trump e para agradar também a sua trupe obtusa e conservadora que ainda considera a China comunista.

Mas os bolsomínios são tão obtusos que não compreenderam que a China está mais para o execrável totalitarismo que eles sempre desejaram ter, mas que a criticaram e a usaram de modo oportunista como mantra eleitoral olaviano de triste memória. Vade retro.

Realmente, tanto em relação ao Presidente atual e quanto ao outro que quer voltar, nós temos pensamentos e conceitos de sociabilidades inconciliáveis e incompatíveis com estes.

Para mim, a China é um péssimo exemplo, seja quanto aos argumentos da vertente oportunista de crítica (caso do Boçalnaro, o ignaro) ou quanto a de aplauso e de exemplo a ser seguido (de Lula).

Dalton Rosado.

Dalton Rosado

Dalton Rosado é advogado e escritor. Participou da criação do Partido dos Trabalhadores em Fortaleza (1981), foi co-fundador do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos – CDPDH – da Arquidiocese de Fortaleza, que tinha como Arcebispo o Cardeal Aloísio Lorscheider, em 1980;