Quando Osvaldo Euclides de Araújo me convidou para escrever sobre escritor e leitor, (escrita e leitura), atividades aparentemente solitárias, mas tão coletivas quanto outras, “num outro nível de vínculo”, fiquei encabulada. Não me considero uma boa leitora, digo isso porque, após meu doutoramento, fiquei muito mais afeita à leitura aligeirada das mídias eletrônicas do que propriamente do livro.
Lembro que, ao final da minha primeira infância, meu pai adquiriu uma biblioteca, estantes e livros, num acordo de contrapartida com o Ministério da Educação e Cultura, visto que começara a montar o pequeno Educandário Maria Paula, um sonho de minha mãe, que já fazia um trabalho de alfabetizar as mulheres da comunidade de Catolé-Horizonte.
Nunca mais esqueci do momento em que abrimos as caixas e os livros apareceram. Aquilo foi uma espécie de miragem, iluminação. Abria os livros, cheirava, sentia a textura, o colorido e a beleza das encadernações…
Então, primeiro, a sensorialidade, a observação do objeto, para somente depois, estreitar uma amizade, um conhecimento afetivo. Mas tudo numa experiência de uma espécie de transe…
Meu pai tinha em sua estante duas coleções que nos eram caras… O Mundo da Criança e O Tesouro da Juventude, que, tempos depois ouvi Elis Regina cantar: “…O tesouro da Juventude em não sei quantos volumes…E quando canto deixo a imaginação no ar”.
Morávamos num sítio, e as árvores, bichos, causos, histórias de trancoso, assombração, eram conteúdos para degustarmos a qualquer hora, de modos que a minha cabeça sempre foi cheia de invenções, muitos conteúdos para voarem pela minha imaginação. Fui aprendendo a me afeiçoar por escritos, ilustrações, leitura silenciosa, ou em voz alta, depois por teatro, por música, poesia, esse mundo fantástico onde as palavras reinam.
Em um dado momento da minha vida observar letras de música foi se tornando um grande prazer. Suely Costa e Abel Silva, Capinam, Clo, Cle, Cli, os três irmãos do Piaui, Cacaso, Luiz Melodia, Jards Macalé, Paulo Cesar Pinheiro, Paulinho da Viola, dentre tantos outros, me fascinavam. Conheci poetas cearenses, fiquei amiga de alguns. José Alcides Pinto morava na minha mesma rua, e li poemas eróticos dele para uma prima, que era também minha amiga. Esse mundo me interessou.
Sinto que é vida, e vida dinâmica estar lendo ou escrevendo. Já escrevi livros didáticos que foram indicados para leitura na rede do ensino básico do estado do Ceará, participei de coletâneas, já tive artigos publicados em revistas e periódicos. Mas só nos anos mais recentes publiquei dois livros inteiramente meus, inclusive as ilustrações.
Pude sentir o que é ser lida, e ao mesmo tempo poder ler outros autores cearenses. E como tem tantos bons escritores nessa terra da luz. Conheci de perto o processo de organização, diagramação, seleção de capa, enfim, desde o momento de escrever até a distribuição, lançamento etc. Trata-se de um trabalho interessante, e exaustivo, cujo objetivo é chegar perto de alguém e conversar. Escritor & Leitor são partes de uma moeda de muito valor, mas essa valoração tem tantas camadas… Todas elas passam pelos efeitos da grande mídia, que tem um objetivo maior: O que pode ser vendável?
Eu quero continuar escrevendo. Quem vai ler, quem pode se interessar, quem me dará retorno, tudo isso é muito importante e necessário para quem escreve, e deseja comunicar. Mas seguimos. Hoje, ouvindo músicas de Caetano Veloso lembrei uma delas, de título: Elegia. Uma letra primorosa, escrita por volta de 1620, e que, na minha juventude, pensei ser do próprio Caetano, mas meu irmão me informou que a melodia é de Péricles Cavalcanti, e a letra é uma tradução de Augusto de Campos, de um tal John Donne, um poeta metafisico inglês, do século dezesseis.
A melodia foi colocada apenas no último trecho de Elegia, que é um poema longo.
Trago aqui, portanto:
Como encadernação vistosa
Feita para iletrados a mulher se enfeita
Mas ela é um livro místico, e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe.
O poema é muito bonito, e vale a pena lê-lo na integra, em mondolivro.com.br, e ouvir a melodia com Caetano Veloso. Podemos observar que, lemos tudo o quanto se encontra nesse mundo, assim como disse Paulo Freire. Muito antes de apreender a ler e escrever dentro da formalidade da língua, aprendemos a fazer as leituras que nos são possíveis.
Uma vez que nos apropriamos de signos e significados das palavras, o mundo como que, abre portas e janelas numa manhã ensolarada. Nossas mãos trêmulas e hesitantes, e ao mesmo tempo desejosas de nos aproximarmos do desconhecido, brincam de caminhar por essa estrada íngreme ou florida, não importa, seguimos exploradores…