Ter conhecimento sobre o processo de criação artística – contextos, motivações, métodos, processos, etc. – sempre me pareceu um assunto fascinante, tanto ou mais que o resultado da obra em sí, em que pese, claro, a relevância fundamental da mesma enquanto justificativa para o interesse em torno do autor em questão.
Nesse aspecto e para deleite dos que me fazem companhia nesse tipo de investigação, o universo da música tem sido uma das manifestações que vem obtendo o maior número de publicações nos últimos anos tanto no Brasil quanto no exterior, seja através de relatos e análises de terceiros ou, de maneira ainda incipiente entre nós, do testemunho dos próprios protagonistas, cujas falas tem o poder extra de elucidar ou revelar episódios que, de outra forma, seguiriam desconhecidos para os mais dedicados pesquisadores, biógrafos ou fãs.
Assim é que tenho em mãos três livros que, a despeito das trajetórias distintas dos seus protagonistas, conseguem cobrir parte significativa da história da música popular brasileira, em especial a produzida entre as décadas de 1960/1980: “Do Vinil ao Download”, de André Midani; “Os sonhos não envelhecem – Histórias do Clube da Esquina”, de Márcio Borges; e “Meu caminho é chão e céu”, de Eduardo Magalhães de Carvalho, mais conhecido como Dadi.
É de Dadi, inclusive, um dos prólogos mais honestos desse tipo de literatura, quando afirma não ser um escritor, mas “…um músico que teve a sorte de participar de alguns momentos maneiros da música brasileira.” E que momentos: Dadi, para quem ainda não sabe ou lembra, foi membro do “Novos Baianos”, do “A Cor do Som” e do “Barão Vermelho”, além de ter emprestado seu talento para a música de Caetano Veloso, Jorge Ben Jor, Chico Buarque e Marisa Monte (contando com “Os Tribalistas”), entre muitos e muitos outros.
Garoto de Ipanema nascido em 1952, filho em um lar musical e cheio de irmãos – afora ele, mais quatro, entre os quais Maurício, o “Mú”, seu futuro companheiro no “A Cor do Som” – , Dadi inicia seu relato destacando o rico ambiente sonoro de sua infância, onde imperava Chopin, Beethoven e a turma da bossa nova, referências primeiras de sua formação.
Seu despertar vocacional, no entanto, viria através da escuta, aos 11 anos de idade, do hoje antológico disco de estreia daquele a quem ele denominou como o seu primeiro grande ídolo, Jorge Ben Jor: “…foi quando descobri o disco Samba esquema novo que eu pirei de vez! (…) Eu ficava tardes inteiras ouvindo Jorge Ben Jor… Ouvia sem parar ‘Mas que nada’, ‘Chove chuva’ e todas as outras faixas. Ouvia alto e fingia que estava tocando com uma vassoura. Aquele disco me fez decidir, já naquela época, que a música seria minha vida.”
O segundo grande impacto na vida musical de Dadi deve-se aos Beatles, segundo relato do próprio: “Quando ouvi os Beatles, foi como mergulhar num mar azul e descobrir outras cores. Não lembro exatamente quando foi a primeira vez: eles foram chegando em ondas, no rádio, na TV, na casa de amigos que compraram seus discos, no cinema. Fui ver o primeiro filme deles, A Hard Days Night – lançado na época como Os reis do iê iê iê -, várias vezes, e a marcha engatou.”
A descoberta do rock via o som dos Beatles fez com que Dadi, já com 13 anos, formasse com alguns amigos da escola a banda The Goofies (Os Patetas), especializada não só no repertório dos Beatles, mas também no de outros grupos que surgiam na esteira da invasão britânica, como The Rolling Stones, The Kinks e The Who.
Os Beatles e o filme A Hard Days Night, de Richard Lester, que tanto estimularam Dadi e sua turma, também foram fundamentais para o despertar de um outro jovem, esse nascido em 1946, nas montanhas de Minas Gerais: Márcio Borges.
A atenção de Márcio para o fenômeno musical que vinha da Inglaterra foi despertada por um amigo recente, Milton Nascimento, o “Bituca”, quando da estreia do filme em Belo Horizonte, em 1965: “Temos que levar os meninos para ver os Beatles. Aquilo é muito sério, bicho.”, teria dito Bituca para um Márcio musicalmente cético e ainda preso a um universo sonoro recheado de orquestras dançantes e nomes como Nico Fidenco, Sergio Endrigo e Henri Mancini.
Milton Nascimento era, nas palavras de Márcio, um “…rapaz de vinte anos, negro, magricela e tímido que se mudara havia pouco para a pensão de dona Benvinda, no 4º andar, recém-chegado de uma pequena cidade do sul de Minas chamada Três Pontas”, e que “…tocava violão e cantava, mas trabalhava mesmo era como datilógrafo num escritório das Centrais Elétricas de Furnas…”.
Já os meninos aos quais Milton havia se referido eram Lô, de 12 anos, e Yé, de 11 anos, dois dos dez irmãos de Márcio, que por sua vez convidaram um amiguinho de aventuras para acompanhá-los na tal sessão de cinema, um garoto franzino de dentes estragados chamado Beto Guedes, de 14 anos.
Resultado imediato da sessão de cinema: os fanatizados Lô, Yé, e Beto formariam, na semana seguinte, os The Beavers (Os Castores), uma das primeiras bandas mineiras especializadas em Beatles.
Optando por desenvolver sua narrativa biográfica nos moldes de um romance, Márcio inclui no livro descrições pormenorizadas de ambientes, localidades e acontecimentos, além de diálogos que, fosse outro o formato escolhido, seriam de difícil consideração, dado o longo percurso do tempo e o número crescente de personagens que vão formando aquele que ficaria conhecido como “Clube da Esquina”, capítulo especial da música brasileira que, além dos já citados Márcio Borges, Milton Nascimento, Lô Borges e Beto Guedes, revelaria nomes como Wagner Tiso, Tavinho Moura, Toninho Horta, Fernando Brant, Ronaldo Bastos e Flávio Venturini, entre outros.
O termo “revelação”, aliás, talvez seja o que mais caracteriza o terceiro personagem dessa breve e tríplice resenha, André Midani, um sírio nascido na mais que milenar capital do país, Damasco, em 1932.
Com uma escrita leve, episódica e sem demasiado aprofundamento ou julgamento dos fatos – isso fica ao encargo do leitor, como parecem sublinhar os curtos parágrafos dos igualmente curtos porém abundantes 51 capítulos do livro -, André Midani nos conduz pela quase inacreditável aventura que foi a sua vida e, principalmente, pelos bastidores da indústria fonográfica mundial, onde o Brasil ocupa – ou ocupava – um lugar de destaque.
Midani começa nos contando sobre o berço original de sua família, a província síria de El Midan, lugar de fronteira com a atual Turquia, e que sua família paterna descende de um dos setenta filhos adotados por Salah al-Din, ou Saladino, o lendário sultão que liderou o Islã contra os cruzados na segunda metade do Século XII.
Ao falar da família materna, Midani situa-a como descendente do pintor Pizarro, “…o único judeu que a Igreja Romana da época admitiu em sua igrejas para pintar obras magníficas em homenagem à glória do Deus Católico.”, revelando ainda que, ao se aposentar, Pizarro “…viajou da Itália para a cidade francesa de Montpellier, onde criou sua família e afrancesou seu nome para Pissere.”
Midani vai além e destaca que seus pais se conheceram na Universidade de Montpellier, casaram e foram morar em Damasco, onde ele nasceu e foi imediatamente acometido por poliomielite, o que serviu para que sua mãe, a pretexto de cuidar da saúde precária do filho, voltasse para a França – a verdade, confessa o autor, é que ela aproveitou-se desse álibi para abandonar o marido, que havia se tornado alcoólatra.
Os fatos então se sucedem vertiginosamente na narrativa até vermos um ainda jovem Midani desembarcando no Brasil no dia 5 de dezembro de 1955, fugindo de uma possível convocação para servir o exército francês no conflito com a Argélia, que buscava sua independência.
Tendo feito carreira na Decca, uma renomada gravadora multinacional, Midani logo tratou de usar seu currículo para procurar emprego no Rio de Janeiro, sendo quase que instantaneamente contratado pela Odeon Records, que estava com planos de investimentos e expansão no mercado fonográfico brasileiro.
A primeira grande sacada de Midani no novo trabalho foi perceber a ausência de uma música voltada para a juventude, algo comum em países como a França, Inglaterra e Estados Unidos: “Eu não entendia o Francisco Alves nem os outros cantores românticos, com suas vozes impostas e operísticas. Aos meus olhos eram ridículos e obsoletos.”
A percepção de Midani e a sua busca por novos valores teve uma providencial ajuda quando Chico Pereira, fotógrafo da gravadora, o convidou para uma festa em seu apartamento, ocasião em que se apresentaria um grupo de amigos dos seus filhos, formado por Roberto Menescal, Nara Leão, Ronaldo Bôscoli, Oscar Castro-Neves, Luís Carlos Vinhas e Carlos Lyra.
Poucas semanas após aquele promissor encontro no apartamento de Chico Pereira, Midani receberia um outro convite, desta feita do mestre baiano Dorival Caymmi, que queria que ele conhecesse um conterrâneo que acabara de desembarcar no Rio de Janeiro e que, segundo Dorival, possuía uma musicalidade muito original. Seu nome: João Gilberto, um jovem cujo repertório continha muitas músicas de um outro jovem chamado Tom Jobim. O incrível ciclo parecia se fechar: “Aí está a música para a juventude brasileira!”, pensou Midani; nascia a Bossa Nova.
Apesar do trânsito crescente entre os artistas e intelectuais brasileiros, Midani nos revela que sua condição de estrangeiro despertava, em certos ambientes, momentos de extrema hostilidade, como o protagonizado pelo cineasta Glauber Rocha em uma reunião em que estava presentes personalidades como Vinícius de Morais e Cacá Diegues: “André, pessoalmente não tenho nada contra você. Porém, estou cansado de ver que, neste país, ainda dependemos de estrangeiros para fazer o que cabe a nós resolver. Isso tem que acabar!”, bradou um indignado Glauber para um atônito Midani.
O aparente ataque xenófobo de Glauber, no entanto, não se restringiu ao enfrentamento presencial: dias depois seria publicado, na primeira página do Caderno B do Jornal do Brasil, um artigo de sua autoria intitulado “André Midani, o agente da CIA”. O desdobramento da história inclui um cínico reencontro com o diretor baiano e um convite do também diretor cinemanovista Nelson Pereira dos Santos para que ele participasse de uma cena no seu próximo filme, O Amuleto de Ogum, onde Midani – que topou o desafio – aparece sendo assassinado em um elevador…
Glauber Rocha e a turma do Cinema Novo, aliás, também aparecem nas memórias de Márcio Borges, que, nos devaneios dos 20 anos de idade, cogitou enveredar pelo cinema.
Com o seu filme de estreia, o curta-metragem Joãozinho e Maria, tendo sido selecionado para um festival de cinema no Rio de Janeiro, lemos um Márcio absorto nas lembranças dessa experiência: “A última noite do Festival Amador JB-Mesbla foi dedicada à entrega dos prêmios. (…) Joãozinho e Maria levou o prêmio de Melhor Inventiva Formal, o que quer que isso quisesse dizer. Minha premiação consistia num diploma de couro e um contrato a ser assinado com a Mapa Filmes, como assistente de direção de sua próxima produção.”
Márcio prossegue: “Conversei com Zelito Viana e Glauber Rocha. Este último foi muito hostil comigo, principalmente quando lhe contei que era amigo de Schubert Magalhães e de Luís Paulino. Parece que tinham uma bronca antiga por causa de Barravento, sei lá. O fato é que, muito tímido, não me senti à vontade entre aquela gente. (…) De modo que deixei aquela premiação para lá e segui minha vida.”
A vida que Márcio seguiu fez com que ele realizasse parcerias e criações musicais marcantes, como é o caso de Para Lennon e McCartney, Clube da Esquina e Tudo que você podia ser, obras que lhe proporcionaram um papel importante no cenário de renovação da música brasileira, papel igualmente bem desempenhado por Dadi, que, depois de ter contribuído com discos antológicos dos Novos Baianos e de Jorge Ben Jor, fazia parte, já na segunda metade da década de 1970, da luxuosa banda de apoio de Moraes Moreira, formada por Armandinho (bandolim), Gustavo Schroeter (bateria) e seu irmão Mú (teclados).
E por falar em irmão, foi um outro irmão de Dadi, Sérgio, que na época era produtor da Phonogram, quem resolveu investir no som daquele grupo de apoio do Moraes, propondo aos mesmos a gravação de duas músicas a serem posteriormente apresentadas numa reunião de produção da gravadora. Não deu certo: sem levar fé no som que ouvia, a gravadora optou por não contratar a rapaziada.
Dadi nos informa dos desdobramentos daquela iniciativa: “Foi quando Sérgio e o Guti Carvalho, que veio a ser nosso produtor, falaram da gente pro nosso amigo André Midani, que estava procurando artistas para o seu cast na recém-implantada Warner/Electra/Atlantic (WEA). E o André falou:’ A banda do Dadi? Eu quero!’ Assinamos com a WEA para gravar três discos. Faltava um nome. Batizamos de A Cor do Som, depois de pedir autorização pro Galvão e pro Pepeu.”
Sucessos à parte, é Dadi quem retira um pouco do verniz glamuroso da vida artística ao relatar, honesta e corajosamente, a dureza cotidiana que se abateu sobre ele quando A Cor do Som acabou, no final da década de 1980: “Sem trabalho, eu ficava em casa gravando as música que compunha, ainda sem letra, no meu gravador de 4 canais. Pensava em gravar meu primeiro disco solo. (…) Cheguei a fazer contato com algumas gravadoras, mas não rolava. Só tinha espaço pro rock nacional.”
Dadi continua: “Para ganhar uma grana, o que apareceu foi fazer parte de uma banda de um programa da TV Globo, o Globo de Ouro, fingindo que estava tocando piano (quando o Mú não podia ir), pois era tudo playback. Era uma sensação muito ruim – eu, que pouco tempo antes era um pop star, ficava vendo aquelas bandas passarem pelo programa… E eu ali, fingindo que estava tocando, só pra ganhar uma grana. Foi quando aprendi a jogar na Loteria e, como bom carioca, no Bicho. Era o que me salvava, às vezes.”
É dessa maneira que, mais do que nos contar sobre os bastidores da nossa música popular em um período especialmente complexo e conturbado da história do país – com destaque inequívoco para os 21 anos da ditadura militar -, Márcio Borges, André Midani e Dadi nos fazem perceber, nas entrelinhas interpostas de suas respectivas narrativas, a construção de uma pujante identidade nacional pautada pela criatividade e pelo desejo de liberdade do nosso povo, aqui representado no conjunto de belas e inesquecíveis canções.
Fica a dica.
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“Do Vinil ao Download”, de André Midani | 1ª Edição | 2015 | Editora Nova Fronteira S.A.;
“Os sonhos não envelhecem – Histórias do Clube da Esquina”, de Márcio Borges | 9ª Edição | 2019 | Geração Editorial;
“Meu caminho é chão e céu”, Dadi | 1ª Edição | 2014 | Editora Record LTDA.