Lições imprudentes sobre as políticas da escrita, de estilo e estética

Os grafites que adornam as cidades — o Brasil não escapou a esta singular codificação da linguagem — são incompreensíveis para os que acompanham esses rabiscos aparentemente destituídos de sentido.

Os arqueólogos da escrita, em futuro ainda remoto, haverão de encontrar certamente explicação para essas representações.

Os códigos artísticos de que se valeram artistas plásticos, desde o tempo de Altamira e das sedutoras inscrições rupestres, foram explicados — e entendidos! — alguns milênios depois de laboriosamente inscritos nas cavernas dos humanos.

Os surrealistas foram explicados e justificados por exegetas da pintura. Foram muitos e aplicados.

Temos, nós humanos, com algum fogo intelectual a nos queimar o esconderijo dos nossos neurônios, uma indisfarçável inclinação para o enigma. A complexidade, ou melhor, a falta de clareza nos textos de muitos escritores, bem assim nos traços confusos do desenho, da pintura e das demais expressões visuais, serviram para torná-las imperecíveis em meio a criação artística e intelectual.

Quanto menos inteligíveis aos nossos limitadíssimos apetrechos da inteligência, mais importante parecem estas formas de expressão.

A Gioconda, obra magistral de Da Vinci, não foi, aos olhos dos entendidos, a mais importante da sua imensa obra criadora. A reputação alcançada por este retrato, fora a sua agitada vida e a perseguição em que se empenharam os seus colecionadores, deve-se às interrogações que aquele rostinho enigmático arrancou ao longo dos últimos séculos. A tentativa de explicar o enquadramento da paisagem de fundo, no plano privilegiado pelo artista, deu-lhe o contraste de mistério. O segredo da modelo preferida (teria sido, de verdade, uma modelo a posar, pelas conivências do amor ou por remuneração combinada?) mergulhou observadores em atenta perquirição, até hoje não desvendada…

O que teria sido de Capitu na celebração da crítica literária, não fosse o véu de mistério que seduziu Machado e os desbravadores da prosa machadiana e da personalidade bovariana da personagem? E de Iracema, sem o naturalismo de Atala transplantado para os trópicos por Alencar?

Bertrand Russel perde para Heidegger, nos altiplanos da filosofia, por um defeito indesculpável entre intelectuais eruditos. A sua clareza.

Arquivado entre filósofos secundários, Russel foi ignorado, nos anos recentes, pelo estilo e pela clareza. Incorreu no pecado imperdoável aos olhos dos “modernos” de ser inteligível. Mergulhou na banalidade dos pensadores mundanos, os best-sellers traduzidos em livros de bolso.

Heidegger, sem que se possa ignorar a sua importância no pensamento europeu das décadas recentes, próximas, apesar dos seus vacilos ideológicos, soube sofisticar e “aprisionar” a linguagem o suficiente — para a tornar de difícil compreensão. Portanto, alvo de pesquisas e buscas infindáveis para que as suas árduas conjecturas fossem decifradas.

As “fake ideas”, derivação incontrolável da incontinência das “fake news”, criaram um cortina espessa atrás da qual se escondem revelações suspeitas, contraditórias, falsas e ininteligíveis, como tudo o que supostamente acontece à nossa volta.

Confesso ter esgotado as minhas reservas e as possibilidade de agenciar os gastos dos mecanismos da Razão prestante para entender o que vejo, ouço ou percebo. Alguns amigos, oferecem, atônitos, em face de tanta conjectura e tão pouca realidade, ar alheio e olhar perdido de quem parece ter desistido de confrontar o nonsense dos fatos e das suas fugidias circunstâncias. Os mais inquietos indagam-me por que continuo a persistir nestas reflexões sobre situações escusas e alternativas improváveis em relação ao Brasil dos brasileiros. O pior: não sei como defender-me destas inclinações suspeitas.

A mentira, a dissimulação, o embuste e a prevaricação lógica assemelham-se, como atributos da humana condição, à grafitagem deitada nos muros de uma cidade indefesa, diante de tanta e sofisticada criatividade.

As “fake-news” e as “fake ideas” que tanto preocupam os agentes da fé e os atores do sistema jurídico, além, naturalmente, dos políticos, privam do poder da dissimulação. “Fake” é, por natureza, função privativa da política e, se me permitem, das artes do governo do Estado. São expedientes nos quais a esperteza se transforma em ardis perfeitos.

Sabem por que? A mentira e a dissimulação não são percebidas na sua literal intenção. Por serem falsas, as notícias fazem-se ideias, em um processo de transfiguração ao qual não faltam boas cabeças e ilustradas e interpretações convenientes. A dialética, as duvidosas ilações, a desconstrução metódica da verdade, são processos contínuos e perseverantes de reconstrução — não seria de “ressignificação”, vocábulo em moda? — da realidade?

Os historiadores do futuro — já andam, certamente, a frequentar o MF Miaw, a última bolação dos marinhos. Hão certamente de defrontar-se com um desafio maior do que o nosso, contemporâneos que somos deste enorme imbróglio moral, ético e político que nos prendeu a todos pelos tornozelos (ou seria pelas tornozeleira?).

O neoconstitucionalismo põe suas garras de papel de fora — nada vem para ficar no mundo dos homens (e das mulheres — e da enorme zona neutra que nos trouxe a “luta dos sexos” como substituto da “luta de classes”. A neodemocracia desperta as criaturas mergulhadas na dúvida quanto as variações ilimitadas do conceito e da ideia de democracia e liberdade.

As nossas grafitagens sobre o poder e a glória, sobre as manhas da governabilidade e, agora, de um conceito requentado da “governança”, serão compreendidas ao fim e ao cabo desta espera às portas do Inferno de Dante. Se estando lá, pudermos sair incólumes, ouviremos as explicações e com a ajuda dos bem inspirados, entenderemos por que foi assim e não de outra forma…

Fonte da imagem: http://leisepaim.blogspot. com

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.

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