LEGITIMIDADE E MOBILIZAÇÃO POPULAR, por Rui Martinho

As formas de mobilização popular estão passando por transformações. O tempo tem diferentes ritmos classificados por Fernand Braudel (1902 – 1985) como de curta, média e longa duração. As transformações históricas vividas desde a segunda metade do séc. XX alcançaram até os fenômenos de longa duração. A escrita ensejou a administração dos primeiros impérios, no período que Darcy Ribeiro (1922 – 1997) referiu como etapa do regádio, em O processo civilizatório. A fundição de metais, como a sempre lembrada máquina a vapor, causaram grandes impactos.

A imprensa trouxe os jornais e o enciclopedismo, cujo impacto levou às grandes reformas religiosas, ao iluminismo e à Revolução científica do século XVII. A Revolução Francesa sofreu influência dos enciclopedistas e dos jornais. O advento do rádio foi concomitante ao surto de líderes autoritários ou totalitários, guardando os dois fatos alguma relação. Hoje as tecnologias de comunicação impactam fortemente nos canais de representação política. O cosmopolitismo, os relativismos cognitivo e axiológico e a ascensão do hedonismo, acompanhados, paradoxalmente, da revanche do sagrado causaram um violento choque cultural.

Criminalidade, corrupção, terrorismo, revolução dos costumes e desencanto com as grandes narrativas políticas se ligam ao choque cultural mencionado. Isso desprestigiou os intelectuais ungidos. Estes são pensadores que se presumem herdeiros dos reis filósofos de Platão (428/7 – 348/7 a.C.), supostamente aptos a orientar a sociedade, descritos por Thomas Sowell (1930 – ?), em Os intelectuais e a sociedade. Na ausência do obstáculo epistemológico dos paradigmas fortemente dominantes (Gaston Bachelard, 1884 – 1962), as massas sentiram-se livres do acatamento das narrativas dos pensadores após descobrirem os seus erros e as falhas de caráter, ressaltados por Paul Johnson (1928 – ?) na obra Os intelectuais.

Poetas têm fama de mentirosos. Intelectuais em geral não são tão diferentes dos bardos. Daí a dirigirem preferencialmente o olhar o lado lamentável da realidade. Isso permite aparentar virtude e sabedoria. Sem protesto, revolta e vítima não existe sábio virtuoso, heróico, salvador. Estas são também as motivações de D. Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes (1547 – 1616). Os intelectuais que resistem ao papel de ungido são boicotados por seus pares. Roger Scrotun (1944 – ?), Pierre Manet (1949 – ?) ou José Guilherme Merquior (1941 – 1991) não são apresentados aos estudantes. Os que passam pelas universidades tornam-se discípulos dos intelectuais ungidos ou permanecem sem outra orientação. Estes percebem que as teorias dos ungidos são tão ruins quanto o Pangaré de D. Quixote. Mas, não conhecendo outras referências, reagem atabalhoadamente.

Não só no Brasil o desgaste dos partidos possibilitou o advento de lideranças personalistas que se comunicam diretamente com as massas. A mobilização da sociedade, outrora tão elogiada, passou a ser profligada pelos ungidos. Todos queriam o poder para o povo mobilizado. Mas isso quando a mobilização era teleguiada pelos “reis filósofos” e os seus agentes, os vaqueiros da boiada cidadã. Hoje temos participação autônoma da sociedade. Despreparo por despreparo, os ungidos também produziram realidades sem sustentabilidade. Só o tempo dirá o que tudo isso trará. Não basta execrar o populismo. É preciso compreendê-lo.

Rui Martinho

Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.

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Doutor em História, mestre em Sociologia, professor e advogado.