Infortúnios da conjuntura política brasileira, por FILOMENO MORAES

Uma das questões mais agudas do processo político-constitucional brasileiro tem sido a da relação entre a presidência da República e Congresso Nacional. A crise da República Populista, com o desenlace manu militari em 1964, foi, fundamentalmente, uma crise de paralisia decisória, oriunda da incapacidade do Executivo – frente ao Legislativo hostil – de tomar decisões políticas adequadas em relação à crescente deterioração do Estado.

No Brasil pós-88, o processo político nacional tomou caminho diferente, fugindo da paralisação decisória e da ingovernabilidade, desenvolvendo-se o padrão de governança intitulado “presidencialismo de coalizão”, cuja pedra angular se afirma numa relação cooperativa entre o Executivo e o Legislativo. Todavia, nomeadamente, nos últimos meses do primeiro mandato e prolongando-se pelo primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff, a coalizão partidário-governamental passou por séria crise, resultando no impedimento da presidente e na assunção do vice-presidente.

De fato, a história recente do Brasil mostra que presidentes que não lograram formar maioria ou a perderam não terminam o mandato, como aconteceu com Getúlio Vargas, Café Filho, Jânio Quadros, João Goulart, Fernando Collor e, recentemente, Dilma Rousseff. Por conseguinte, está-se diante de um problema político-institucional real, qual seja, o de que presidente que não logra formar maioria ou a perde não termina o mandato. Como observa Octavio Amorim, “um dos grandes desafios institucionais do Brasil é conseguir ter governos minoritários efetivos”, pois “a fórmula de sobrevivência de uma Presidência minoritária ainda não surgiu no Brasil”. Assim, o presidencialismo de coalizão é uma fórmula genérica, que oferece justamente mecanismos pelos quais um presidente cujo partido não tem a maioria possa formá-la, baseada na troca de cargos ministeriais por apoio legislativo.

Juan Linz já chamara a atenção para o que considerava ser a origem de todos os problemas do presidencialismo: o confronto de poderes, que se dá quando um presidente sem lastro parlamentar busca o apoio direto na sociedade, ou seja, a reivindicação de uma legitimidade popular superior à do Congresso. No Brasil, o fenômeno do presidencialismo de coalizão assomou como modalidade de governança a distinguir os anos que se seguiram à promulgação da Constituição de 1988. Destacando o papel do presidente da República, responsável, em última instância, pela continuidade ou descontinuidade da coalizão e o bom ou mau êxito da governança, tal arranjo institucional e operacional foi, em regra, exitoso no que diz respeito ao quesito governabilidade. Todavia, pode ser cruel pela ação desagregadora que exerce sobre os partidos políticos, pela ação deletéria relativa à autonomia do Congresso Nacional e pela cultura de corrupção a que, não necessariamente, pode vincular-se na sua operação.

Nas últimas eleições, uma agravante somou-se aos infortúnios e desventuras do experimento democrático-institucional, a saber, a erosão do sistema partidário, quer pela diminuição da representatividade no nível da sociedade, quer pelos patamares elevados de fragmentação parlamentar. Agravante maior ainda foi a eleição de um presidente da República sem base em um partido relevante e sem apetência para a formação de uma coalizão de governo, o que constitui, consequentemente, uma grande incógnita sobre o futuro do sistema político.

Destarte, as diatribes continuadas, por parte do presidente da República e do seu entorno contra o sistema político, a política e os políticos, ressoam como voz agourenta, portadora de violência real e simbólica, contra o processo político-constitucional democrático, o qual, a duras penas, tem-se institucionalizado no país sob a égide da Constituição Federal de 1988. do mesmo modo, transformar o espaço virtual em teatro de pugilismo de baixo-calão político e de indigência intelectual, tendente a emparedar as instituições, não é o que Brasil esperava nem é o que Brasil necessita para o encaminhamento dos seus graves problemas políticos, sociais e econômicos. E, com certeza, tal encaminhamento só poderá ser feito com a política.

Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).

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Filomeno Moraes

Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022).