A imprensa livre do dinheiro do poder público e das estatais: seria melhor ou pior? – Parte 14 – por Osvaldo Euclides

A imprensa brasileira está vivendo momentos difíceis, sobretudo quando consideramos os últimos tempos, em que houve grande movimentação nas circunstâncias políticas e econômicas do país. No mercado financeiro costuma-se dizer que só quando a maré baixa é que você consegue ver quem estava nadando nu. A ideia se aplica bem para entender o nível de desgaste que sofreram as grandes e tradicionais empresas de comunicação. De tal maneira a comunicação transformou estabilidade econômica em crise e depois crise econômica em estabilidade, de tal maneira pintou a política como crime e o crime como política, de tal maneira suavizou absurdos e deu ares de absurdo a práticas velhas conhecidas, de tal maneira vendeu como criminosas pessoas, empresas e instituições e ao contrário fez vista grossa a ‘santinhos do pau oco’, e tudo isso fez em tão pouco tempo, e tão abertamente, que qualquer pessoa minimamente ajuizada e atenta percebeu a manipulação. A grande imprensa tradicional estava nadando nua. E continua, sim, porque fica cada vez mais complicado recuar, o uso do cachimbo fez a boca torta.

Talvez seja necessário exemplificar para proporcionar melhor entendimento do que se afirma. Vamos lá.

É uma grosseira manipulação da verdade estabelecer que o maior problema do país é o défict fiscal primário, enquanto fica proibido falar em déficit nominal. Mais grosseiro ainda é dizer que a única maneira de resolver o problema é cortando gastos da máquina de serviços públicos. E não deixa de ser uma violência interditar qualquer debate que se faça no sentido de trilhar outros caminhos. Que danos algo assim causa ao país? Isso representa uma sutil, mas absoluta, interdição do debate sobre o futuro e sobre o que é realmente estratégico para os brasileiros e brasileiras, sem falar que continuamos a afundar em déficit. É doloroso observar isso acontecendo dia após dia num momento decisivo, em pleno processo de escolhas eleitorais. O debate é pobre, mas a culpa não é “dos políticos” (outra simplificação grosseira).

A grande imprensa tradicional não tem cumprido seu papel institucional e histórico de informar e formar a opinião pública, oferecendo informações, análises, opinião e um debate de qualidade e profundidade que mostre os quatro ou cinco ângulos que todo assunto relevante oferece. Não, o cidadão tem recebido sempre a mesma informação, a mesma opinião, informação e opinião repetidas à exaustão, com veto a quem quer que pense diferente.

A meia dúzia de empresas que recebe o nome de grande imprensa tradicional faltou com a verdade e afastou-se dos princípios e valores do bom jornalismo. E, curiosamente, agiram todas da mesma maneira, na mesma direção e no mesmo sentido. Não é aceitável. Nem explicável é. Está tudo escrito, gravado e guardado, ao alcance de experts e pesquisadores. O que foi dito pode ser visto. Assim como ficará evidente para o analista atento tudo o que não foi noticiado, desvio de procedimento tão ou mais grave.

Por outro lado, há a Internet e as redes de informação formadas por milhões de indivíduos. O experiente jornalista Ricardo Kotscho escreveu faz dois dias no seu “Balaio do Kotscho” (referindo-se ao fato de que milhões de pessoas foram às ruas em todo o Brasil e quase não foram notícia): “Este 29 de setembro vai ficar marcado como o dia em que o poder da comunicação mudou de poucas para milhões de mãos. Nos tornamos todos emissores e receptores de informações, por todos os meios, sem intermediários, sem editores nem chefes, para dizer o que pode ou não ser mostrado. Embora ainda queiram influir no resultado, os velhos barões da mídia perderam o poder de decidir monocraticamente em quem podemos ou não votar, já não elegem nem derrubam candidatos. Somos todos agora multimídia, online, full-time, ninguém mais segura o grito parado no ar, que agora chega aos ouvidos e às consciências de toda gente”.

Está certo Ricardo Kotscho? A grande imprensa tradicional implodiu-se e agora somos todos os brasileiros milhões de editores? Seria hora de comemorar? Estará finalmente a internet cumprindo a promessa da democratização da informação e do poder de comunicação?

Calma, gente. Menos.

As redes sociais mundiais também estão concentradas em poucas mãos. São corporações que receberam bilionários investimentos e esses investidores têm duas coisas muito fortes: um sólido perfil ideológico e uma insaciável sede de lucros e dividendos. Democratização para eles significa apenas ‘mercado’, ‘demanda’, clientela. Nem bem completaram duas décadas e já são acusados de interferir indevidamente nas eleições daqui e d’acolá, afetando direta e significativamente seus resultados.

Essas empresas de tecnologia da informação têm algo que a grande imprensa jamais teve e sequer sonhou ter: um completo conhecimento sobre como pensa, o que sente, como age e como reage o seu cliente, cada um. Sabem mais sobre as pessoas do que as próprias pessoas, atualizam-se em tempo real… Têm, pois, potencial e capacidade de atrair sua atenção, escrever-lhe a mensagem desejada, influenciar-lhe o pensamento, provocar-lhe emoções específicas e levá-la mesmo a agir. É um potencial de manipulação sem qualquer precedente. Essas corporações também fazem o discurso da liberdade (enquanto concentram cada vez mais poder), dizem-se globais, mas na verdade simplesmente não têm pátria, são gratuitas e acessíveis (ainda que só na aparência, pois os dados e a intimidade de cada um valerão ouro), podem crescer exponencialmente, pois seus custos são ínfimos, e tendem a (quase de forma inevitável) enfraquecer (ou simplesmente comprar) quem quer que lhes surja à frente como adversários ou concorrentes.

Entre esses dois gigantes os pequenos blogs independentes fazem a sua luta desigual. Não conseguem captar e vender informação (oferecem análise política e opinião e, regra geral, editam em afinidade com essas escolhas políticas), não atuam em rede (ainda) e não alcançam apoio financeiro para crescer rápido. Foram ignorados pelos governos que se diziam de esquerda e são perseguidos pelo atual governo de direita. Têm qualidade no que fazem, mas não alcançam a massa (sua audiência ainda se conta em milhares, quando a mídia tradicional tem audiência de milhões).

Não há sentido em torcer por um dos três, contra os outros dois. A sociedade deve organizar-se para poder usar os três, cada um com seus limites e suas possibilidades, em complementaridade, nunca em exclusividade.

Será um erro grave e lamentável abrir mão de qualquer dos três. Será um erro imperdoável não agir a tempo para regular a movimentação dos gigantes. E também será um erro enorme não usar de forma inteligente o poder e os recursos públicos em defesa de princípios e valores do melhor jornalismo. Nesse contexto, a verba de propaganda dos orçamentos e das estatais pode (e, sob critérios inteligentes, talvez até deva) ser usada.

Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.

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Osvaldo Euclides de Araújo

Osvaldo Euclides de Araújo tem graduação em Economia e mestrado em Administração, foi gestor de empresas e professor universitário. É escritor e coordenador geral do Segunda Opinião.