Já fui sincero e puro num mar de lama, eu era lama, caos originário da vida, e era também ingenuidade – extrema pureza d’alma.
Lembrei hoje de Hyulla e Beatriz. E do Velhinho, o Coelho. E do camaleão que matei antes de dar nome depois de tanto querer ajudar.
Na época memorialmente mais terrível e mais feliz da minha vida. Habitando o ocaso de meus tios e o silêncio do sítio.
Um paraíso que vi, vivi, e vencido vi ser eu ao mesmo tempo o móvel da divisão.
Hyulla era uma gata muda pelo sofrimento.
Peguei-a na saída de um esgoto numa quarta-feira de cinzas. No dia em que vi a cena de uma pessoa querida em surto – nunca me esquecerei desta cena na história de minhas retinas.
Cuidei dela como quem cuida de um outro.
Dei remédio pra verme, limpei toda a orelha, fungos na pele, dei banho, cuidei dela como quem cuida de uma alma em surto.
E ela foi envenenada no exato instante que descobriu a vida e se curou de suas feridas.
Ela nunca miou. Nem crescia, de jeito nenhum.
Mas era a gata mais bonita que já vi. Seu pelo preto amarelo-laranja e branco realçava o negro na testa que fazia uma perfeita divisão até o focinho com o tom amarelado.
Beatriz era o próprio espírito santo em pureza na minha frente. Miúda e ingênua. Entrou pela grade do portão enquanto eu ajeitava um canteiro, assim do nada, sem nem licença pedir.
Belial parece ter vindo buscá-la no quarto dia na forma de um gato sujo, doente, hostil porque hostilizado; apareceu durante a manhã, sumiu, e à noite entrou por uma fresta; acordei num susto, ao som do miado alto e gemido, e nunca mais a vi.
A cena talvez mais linda de toda minha vida é a de Hyulla e Beatriz brincando no meio do meu primeiro roçado em pé. Num fim de tarde, pôr do sol no horizonte e os milhos todos rosados… gafanhotos, formigas, feijão, macaxeira e batata. E as duas brincando… Eu, de enxada na mão, apenas olhava aquilo tudo.
Ali, naquele instante, encontrei a dita iluminação.
A beleza.
A verdade.
Deus.
Natureza.
Tudo.
Aquele instante redimiu dentro de mim uma vida inteira.
Várias vidas numa única circunstância.
Já fui sincero e puro num mar de lama, eu era lama, caos originário da vida, e era também ingenuidade – extrema pureza d’alma.