Apresentação
Isaac Deutscher (1907-1967), marxista polonês radicado na Grã-Bretanha, foi um dos principais historiadores da Revolução Russa e autor de uma monumental biografia de Leon Trotski, considerada por muitos a melhor delas, publicada no Brasil em 1968, em três volumes (O profeta armado, O profeta desarmado e O profeta banido), bem como de numerosos livros sobre história política contemporânea.
O que poucos conhecem é sua atuação como crítico literário. No exercício desse ofício, Deutscher aplicou com acuidade crítica e sensibilidade estética as categorias marxistas para examinar a obra ficcional e ensaística de importantes figuras da cultura contemporânea. Uma prova dessa sua qualidade intelectual é o texto que publicamos agora, pela primeira vez no Brasil, no qual analisa o conceito de “realismo crítico” do filósofo e crítico literário húngaro G. Lukács (1885-1971), mostrando a filiação do pensador húngaro ao estalinismo.(Auto Filho, editor da coluna).
Isaac Deutscher
György Lukács e o “Realismo Crítico”
Fonte : Marxism in Our Time , The Ramparts Press, Berkeley, 1971. Esta revisão dos Ensaios sobre Thomas Mann, de György Lukács (Grosset, Nova York, 1965), foi originalmente transmitida no Terceiro Programa da British Broadcasting Corporation, em março de 1968. Digitalizado e preparado para o Marxist Internet Archive por Paul Flewers.
As observações a seguir sobre a crítica literária de György Lukács foram ocasionadas pela leitura de uma coleção recentemente publicada, Essays on Thomas Mann1 , que ele escreveu entre os anos 1909 e 1955, mas principalmente nas décadas de 1930 e 1940. O livro é fragmentário e as peças reunidas não resultam em um estudo coerente. Ainda mais notável é a consistência da interpretação básica de Lukács da obra de Mann. Em seu primeiro ensaio, ele resumiu em uma única frase conclusiva sua impressão da Alteza Real , o romance de Mann que apareceu logo após Buddenbrooks: “Há na escrita de Mann aquele sentido de dignidade aristocrática burguesa agora em desaparecimento: a dignidade que deriva do movimento lento da riqueza sólida”. O crítico que escreveu essas palavras, é claro, ainda não era marxista. Mas ele estabeleceu aqui o tom para muitos de seus comentários posteriores. Retomando o tema entre as duas guerras mundiais, e novamente em 1945, ele enfatizou “o ideal burguês como o princípio orientador da vida e do trabalho de Mann”. Isso, é claro, pretendia ser um julgamento objetivo, como classificação e avaliação, não como denúncia. “As histórias de Mann”- diz Lukács – “nunca refletem o humor cotidiano da classe média alemã”, muito menos seu humor reacionário; elas marcam, ao contrário, o “ápice da consciência burguesa”. Mesmo quando Mann se opõe à burguesia, “ele nunca se afasta dela”, e “sua influência repousa nesta sólida base social… ele simboliza tudo o que há de melhor na burguesia alemã”. Finalmente, em 1955, Lukács reitera: “A originalidade de Mann – sua leveza, serenidade e humor – brota de um verdadeiro autoconhecimento da burguesia contemporânea”.
Infelizmente, esse “verdadeiro autoconhecimento” é um conceito um tanto evasivo, quase hegeliano: denota presumivelmente o ápice da consciência a que a burguesia alemã deveria ter ascendido, mas não ascendeu; expressa um ideal ao invés de uma realidade histórica, mas apresenta o ideal como realidade. (Quantas vezes os escritores que pensam que podem, como Marx, “virar Hegel de cabeça para baixo” e colocá-lo no chão, acabam ficando de cabeça para baixo!). Na verdade, a atitude de Mann para com a burguesia alemã era menos idealista do que Lukács sugere. Da Morte em Veneza e Buddenbrooks até A montanha mágica, em seus últimos romances, Mann lidou com os esplendores e misérias, as dificuldades e a decadência de sua classe social em um espírito de amor tenso – ódio e até mesmo de desespero, em vez de “leveza e serenidade”. E como poderia ele, ao mesmo tempo em que personificava a “consciência” e o “verdadeiro autoconhecimento” da Alemanha burguesa, ser tão “sereno”?
No entanto, estamos lidando aqui com algo como o caso de amor intelectual de Lukács: ele interpreta cada um dos romances de Mann como um palco na luta heróica do escritor pela alma de sua nação ou em sua “busca do homem burguês” na Alemanha. (“Ele busca o espírito da democracia na mente do burguês alemão, rastreando os mais novos indícios e sinais a fim de despertá-los e promovê-los na forma ficcional.”). É verdade que Mann teve seus deslizes: durante a Primeira Guerra Mundial, ele exibiu um chauvinismo militarista vulgar e uma hostilidade altiva contra tudo o que a esquerda alemã e a democracia alemã representaram. Em uma passagem não totalmente isenta de súplicas especiais, Lukács fala da “situação paradoxal e quase trágica de Mann” e acrescenta: “… mesmo o maior dos homens não precisa se sentir envergonhado de ter cometido erros… especialmente porque neste caso eles não eram subjetivos e pessoais, mas surgiram do profundo envolvimento de Mann com a Alemanha…” Então, novamente, nos primeiros anos do Terceiro Reich, certas ambigüidades ideológicas na atitude de Mann despertaram a apreensão de Lukács: ele se perguntou se o “crescimento lento e orgânico” de Mann, que já uma vez, em 1914, “o colocara em uma situação perigosa”, não pode mais uma vez “ameaçar seu desenvolvimento”. Lukács temia uma conciliação temporária entre Mann e os nazistas? Nesse caso, o medo era infundado; mas sua mera possibilidade aponta para as complexidades ideológicas inerentes à perspectiva de Mann e seu “profundo envolvimento com a Alemanha”.
A sinceridade e coragem da oposição de Mann ao Terceiro Reich estavam além de qualquer dúvida; e o significado de sua atitude era ainda maior por causa das resistências internas que ele teve de superar. Mas o impulso que o mudou para a oposição e exílio não era apenas “anti-fascismo progressivo”’ ou “busca do homem burguês” – que era bastante o antagonismo da burguesia aristocrática cultivada para com os plebeus selvagens, o Kleinbürger e Lumpenproletarien, estavam correndo enlouquecidos à sombra da suástica. Por causa de seu caráter tão fortemente definido, o antagonismo do escritor ao nazismo era “orgânico” e intenso, mas também relativamente estreito, embora ele buscasse superar suas limitações.
De alguma forma, Lukács não consegue lidar com esse problema, talvez porque ele não avalie adequadamente o contexto social do Terceiro Reich, contra o qual grande parte da obra de Mann deve ser definida. De um modo geral, a escrita de Lukács aqui fica bem abaixo de seus próprios padrões em O romance histórico2. Há muito menos percepção aqui, menos clareza e precisão. Considerando que a maioria desses ensaios foi escrita na Rússia e na Hungria em uma época em que a crítica literária era reduzida aos mais cruéis clichês stalinistas, é notável até que ponto Lukács permaneceu fiel a seus gostos discriminadores e seu hegelianismo acadêmico, com todas as suas boas e más qualidades. Mesmo assim, ele pertence essencialmente à era de Stalin; e, apesar da lenda que o apresenta como o herói de uma resistência intelectual ao stalinismo, e apesar de seus embates com o regime Rákosi em seu país natal, ele pode ser descrito como o único crítico literário stalinista de alta estatura. Certamente, sua formação filosófica e meticulosidade estética não o permitiram ficar totalmente submerso na ortodoxia. Seu caso foi, no entanto, de rendição genuína ao stalinismo.
Não se trata apenas da participação ritualística de Lukács no “culto à personalidade”, do qual reproduz alguns exemplos chocantes, mesmo neste volume, para o qual escreveu um prefácio em 1963. Ele fala, por exemplo, das tradições da democracia alemã e do socialismo que “desde Marx e Engels elas foram enterradas sob a falsificação reacionária. Uma marca da pobreza da história alemã comum à burguesia e à classe trabalhadora é o fato de que Marx e Engels até agora não entraram no patrimônio cultural nacional, como Lenin e Stalin fizeram na Rússia”. Historicamente, isso não é bem verdade: durante o meio século que separou a morte de Marx e a ascensão de Hitler ao poder, o marxismo penetrou profundamente na consciência da classe trabalhadora alemã – pelo menos tão profundamente quanto o metodismo e o fabianismo se impressionaram com o trabalhismo britânico. Com um golpe de sua pena, Lukács apaga da história aquele meio século, e com ele a obra de Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Franz Mehring, para não falar de Kautsky (cujos melhores escritos exerceram influência decisiva sobre Lenin), Bebel e outros. É verdade que, depois de 1933, e novamente depois de 1945, a tradição marxista foi desacreditada e destruída na Alemanha pelos esforços do nazismo, do reformismo social e, por último, mas não menos importante, do stalinismo.
Em vez de reconhecer esses fatos, Lukács simplesmente opõe à “pobreza histórica” da Alemanha a edificante contribuição stalinista para a “herança cultural nacional” da Rússia. Em seu prefácio, ele nem mesmo hesita em afirmar sem reservas que “por mais de trinta anos o socialismo existiu e se fortaleceu na União Soviética”.
A dependência ideológica de Lukács ao stalinismo é mais profunda do que até mesmo essas declarações sugerem. Ele foi um dos poucos adeptos do “realismo socialista” com formação teórica, talvez o único importante expositor do “ideal estético” do jdanovismo3. Analisando o Doutor Fausto, de Mann (em um ensaio de 1948), ele afirma: ‘Por uma coincidência notável (se coincidência for) eu tinha acabado de ler o Doutor Fausto quando o Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética publicou seu decreto sobre a música moderna. No romance de Thomas Mann, esse decreto encontra sua confirmação intelectual e artística mais completa… “O decreto” a que Lukács se refere continha a denúncia jdanovista das obras de Shostakovich e Khachaturian, o sinal infame para uma furiosa caça às bruxas contra os “decadentes” formalistas e “cosmopolitas” na música e nas outras artes. Lukács , é claro, não era um dos caçadores de bruxas vulgares; mas ele abraçou zelosamente o princípio subjacente à caça às bruxas e o elevou ao nível de teoria histórico-filosófica. Ele conduziu a campanha contra a “decadência modernista” no campo do “patrimônio cultural”. O realismo socialista foi proclamado o ideal estético da época pós-revolucionária, e Lukács encontrou seus antecedentes no “realismo crítico”4 da grande literatura e artes burguesas da época pré-revolucionária. Ele empreendeu sua elaborada classificação e avaliação da herança cultural de acordo com este princípio: ele identificou o realismo crítico com o progresso e rejeitou qualquer ideia e estilo discordantes como reacionários. O lugar exaltado que ele atribui a Mann é o de “último grande representante do realismo crítico”, que “nunca foi moderno no sentido decadente”.
Como Lukács define “realismo crítico”? Às vezes, ele o interpreta de forma tão ampla que o conceito se torna inútil como uma ferramenta de crítica; em outras ocasiões, ele o interpreta de maneira tão restrita que o transforma em um dogma sem vida. “Thomas Mann” – observa ele – “é um realista cujo respeito, na verdade, reverência, pela realidade é de rara distinção. Seus detalhes, ainda mais seus enredos, seus projetos intelectuais podem não ficar na superfície da vida cotidiana; sua forma é bastante antinatural. No entanto, o conteúdo de seu trabalho nunca deixa finalmente o mundo real”. Isso é pura tautologia. De quase todos os desprezíveis “decadentes”, de Proust e Joyce a Sartre e mesmo Beckett, pode-se dizer que o “conteúdo de sua obra nunca finalmente deixa o mundo real”. O próprio Mann causa a Lukács alguns problemas, pois sua atitude em relação à “vanguarda decadente” era ambivalente e ele afirmava afinidade com Joyce e o “romance não romanesco”. Nesse ponto, Lukács corre para resgatar Mann do próprio Mann e explica, em algumas passagens profundamente nebulosas, que a racionalidade e o objetivismo de Mann o separam da literatura da decadência burguesa. Lukács iguala o realismo crítico ao racionalismo, objetivismo e otimismo social; ele sutilmente projeta o “herói positivo” do cânone jdanovista no romance e no drama ocidental. Ele não consegue ver que o pessimismo e o desespero do artista ocidental contemporâneo podem ser formas de protesto contra nossa ordem social e a desordem de nossa civilização, e que muito do irracionalismo dos escritores e pintores modernos expressa uma desconfiança da “razão” banal e complacente do sistema burguês. Mesmo o sentimento de condenação dos “decadentes” reflete em alguma medida o impasse destrutivo global entre revolução e contra-revolução (ou entre classes possuidoras degeneradas e classes trabalhadoras politicamente paralisadas), um impasse afetando todo o clima espiritual de nosso tempo. Como os marxistas podem esperar que a arte e a literatura sejam capazes de quebrar moralmente o impasse histórico que a política até agora não conseguiu quebrar de forma prática? Um impasse que afeta todo o clima espiritual de nosso tempo.
A antítese do racionalismo autoconfiante e do pessimismo irracionalista está, é claro, profundamente enraizada na ideologia burguesa. Na Inglaterra vitoriana, Macaulay e Carlyle incorporaram a contradição. O marxismo, no seu melhor, não se identificou com um desses elementos e rejeitou o outro, mas absorveu o que era vital em cada um deles e transcendeu a ambos. Os próprios Marx e Engels tinham um pouco mais de ternura pela “rebelião contra a razão” de Carlyle, apesar de suas implicações sombrias, do que pelo otimismo brilhantemente superficial de Macaulay. As predileções de Lukács vão no sentido contrário. Ele argumenta principalmente a partir de sua formação alemã e vê as fontes ideológicas do nazismo na Zerstörung der Vernunft [destruição da razão] de Schopenhauer, Wagner e Nietzsche, embora às vezes sinta que pode estar prestando ao nazismo uma honra imerecida ao atribuir-lhe tal ancestralidade. Na verdade, o nazismo, na medida em que se apropriou de qualquer tradição filosófica da “rebelião contra a razão”, apenas a parodiou da maneira mais repulsiva, assim como, em outro nível, captou as emoções anticapitalistas das classes médias arruinadas do 1930 apenas para explorá-las e enganá-las. Apropriou-se até do nome e dos símbolos do socialismo; ele se autodenominou Arbeiterpartei – partido do trabalhador -, e, desse modo, atrelou à sua causa contra-revolucionária muitos humores imaturamente revolucionários que flutuavam na sociedade alemã. Na verdade, ele derivou um imenso impulso dinâmico de sua identificação com todo tipo de rebelião contra a “razão” falida do establishment capitalista. Conseguiu fazê-lo porque os partidos da classe trabalhadora falharam política e espiritualmente em tomar uma posição comum contra ela. Em todo caso, a tarefa dos marxistas não era invocar contra o nazismo a “razão”, a “dignidade aristocrática” e as tradições respeitáveis da burguesia; muito menos denunciar todas as formas imaturas e irracionais de rebelião. O marxismo poderia prevalecer, se é que prevaleceria, apenas reafirmando de maneira convincente seu próprio programa e princípios e demonstrando sua relevância para a terrível crise daqueles anos. No entanto, a obra de crítica literária de Lukács consistia precisamente em invocar contra o nazismo o racionalismo e a respeitabilidade da tradição burguesa. Sua abordagem reflete o fracasso de seu partido em ver sua tarefa e até mesmo em compreender seu erro após o evento.
O corolário disso é a estética essencialmente conservadora de Lukács. “É característico” – diz ele – “tanto de Goethe quanto de Mann que, embora nunca ignorem as novas tendências literárias, eles as recebem com reserva”. Isso certamente é mais característico de Lukács do que de Goethe ou Mann. O próprio Goethe foi um grande inovador e, mesmo na velhice, saudou, sem reservas, a poesia de Byron, a mais ousada inovação do romantismo europeu. Quanto a Mann, vimos como Lukács vem tentando explicar a fraqueza de Mann para com Joyce. A própria reserva de Lukács em relação à “inovação” toca o absurdo quando ele se aproxima da psicologia moderna e expressa seu violento e mal informado preconceito contra Freud. A psicanálise é para ele ainda um dos excessos repugnantes do irracionalismo reacionário. “Assim como Nietzsche e Spengler [afirma], Freud e Heidegger também… são… os mais verdadeiros sinais dos desastres intelectuais do período imperialista…”. Ele até consegue colocar Freud e os nazistas na mesma bolsa ideológica. Aqui, novamente, ele está em apuros com Mann, que era um devoto admirador de Freud; mas ele tenta sair da dificuldade, descartando o famoso Festrede [discurso comemorativo] sobre Freud como a aberração de um “ensaísta que cria ideias”. Inevitavelmente, ele trata todas as repercussões artísticas da psicanálise como inúteis e culturalmente prejudiciais. Aqui o conservadorismo do filósofo acadêmico pré-freudiano se confunde com a incompreensão evidente do jdanovista.
Uma observação adicional sobre o pano de fundo político dessa atitude não estará fora de lugar aqui. Ao se render ao stalinismo, Lukács não se adaptou a todos os seus aspectos com igual facilidade. As cruezas e crueldades do “culto à personalidade” devem tê-lo feito estremecer mais de uma vez. Ele certamente ficou perturbado com os ziguezagues ultra-esquerdistas do stalinismo, mesmo enquanto os seguia obedientemente. Mas ele se identificou de todo o coração com os aspectos “moderados” e direitistas do stalinismo, em particular com as Frentes Populares da década de 1930 e seus prolongamentos na década de 1940. Não é por acaso que a maior parte de sua obra de crítica literária date desses dois períodos. Ele elevou a Frente Popular do nível tático ao da ideologia: projetou seu princípio na filosofia, na história literária e na crítica estética. Devemos lembrar que a Frente Popular foi a reação do stalinismo contra suas próprias loucuras ultraesquerdistas, através das quais suavizou o caminho de Hitler para o poder. O stalinismo procurou então se assegurar contra as consequências desse desastre por meio de um apelo à “consciência antifascista” da burguesia ocidental, por causa da qual abandonou, e de fato proibiu, todas as formas de orientação revolucionário-proletárias e socialistas de ação. Stalin retomou essa linha após o ataque de Hitler à URSS e persistiu nela no início do período posterior à guerra, quando ainda esperava manter a Grande Aliança6. Em todas essas situações, os partidos comunistas fora da URSS trabalharam para superar a desconfiança da burguesia na Rússia e no medo do comunismo; e assim eles minimizaram ou mesmo negaram seus compromissos marxistas revolucionários e defenderam (e quando necessário ajudaram a restaurar) os regimes (e ideologias) da democracia burguesa. Visto que o nazismo havia levantado as classes médias baixas contra os grupos dominantes tradicionais, o stalinismo alinhou-se, sempre que possível, com estes últimos e os ajudou a manter seu domínio sobre as massas populares. Para a intelectualidade que seguiu os partidos comunistas, isso implicou certas reorientações histórico-filosóficas e uma ruptura com muitos hábitos de pensamento. Acadêmicos, escritores e artistas esquerdistas foram persuadidos de que não deveriam mais “rejeitar” os fetiches patrióticos, que eles não deviam se entregar ao anticlericalismo militante, e que eles não deviam mostrar uma preferência muito marcada pelo revolucionário-plebeu, em oposição às vertentes “aristocráticas” de sua herança cultural. Os comunistas aprenderam a se comportar como bons patriotas, a “estender a mão” aos seus antigos inimigos clericalistas e a tratar com lisonja discreta ou aberta os valores culturais convencionais da burguesia.
A obra de Lukács é a grande e requintada obra-prima dessa lisonja. Seus escritos sobre Mann são um pendant da “luta por aliados” stalinista. Era tarefa de Lukács, por assim dizer, estabelecer uma frente ideológica comum com aquelas “forças intelectuais” das quais Mann poderia ser considerado como porta-voz – Mann, o único grande escritor antinazista verdadeiramente aristocrático e verdadeiramente alemão no exílio, o único alguém que os establishments de Wilhelmine e Weimar aceitaram e homenagearam durante décadas. A premissa para tal frente comum era uma avaliação “liberal” do trabalho de Mann, uma avaliação na qual as bordas da crítica marxista foram embotadas.
Isso não significa que os marxistas não devem ou não devam estar preocupados com a luta por aliados ou que não devam estar intensamente preocupados com o problema do patrimônio cultural. A questão é que o stalinismo abusou dessas preocupações por seus jogos táticos superficiais e oportunistas. Os partidos stalinizados conduziram sua busca por aliados de maneira tão inescrupulosa e perversa que se perderam no processo; isto é, eles perderam de vista os interesses e aspirações das classes trabalhadoras. Sua tão anunciada ansiedade em relação ao patrimônio cultural forneceu-lhes desculpas para demonstrações surpreendentes de filistinismo filosófico e artístico. Foi nesse contexto que Lukács exalou tão livremente seu preconceito contra a “inovação artística”. Esta conta, entre outras coisas, pelo fato de que enquanto elogiava a suposta “busca do homem burguês” e o tradicionalismo artístico de Mann, Lukács nada tinha a dizer sobre Bertolt Brecht, o outro grande escritor antinazista que era, entretanto, em certo sentido, o antípoda de Mann. A irreverência absoluta de Brecht pelo “homem burguês”, suas simpatias provocativamente plebéias e seu extremo não convencionalismo artístico – tantos contrapontos dialéticos à perspectiva de Mann – conflitavam implicitamente com o humor da Frente Popular e eram estranhos a Lukács. Seu silêncio sobre Brecht é, portanto, um comentário involuntário sobre sua própria deficiência como crítico.
Notas do Editor
- Este livro de ensaios de Lukács sobre Thomas Mann não foi publicado no Brasil. No entanto, alguns textos seus sobre o escritor alemão foram incluídos em obras de sua autoria traduzidas para o português. O seu ensaio Thomas Mann e a tragédia da Arte Moderna foi incluído no livro Ensaios sobre literatura, coordenação e prefácio de Leandro Konder, Rio de Janeiro: editora Civilização Brasileira, 1965. (Uma segunda edição foi publicada em 1968). O ensaio Franz Kafka ou Thomas Mann? integra o livro Realismo crítico hoje, Brasília: Coordenada Editora de Brasília, 1969.
- Esta obra de Lukács foi publicada no Brasil em 2011 pela editora Boitempo Editorial, de São Paulo, com tradução direta do original alemão feita por Rubens Enderle. Ela faz parte do projeto de publicação no Brasil das obras completas de Lukács em edições críticas.
3, Referência ao nome de Andrei Alexandrovitch Jdanov (1896-1948), formulador do “ideal estético” do estalinismo, conhecido pelo nome realismo socialista, assim definido por ele: “O realismo socialista, que representa o método principal da literatura e da crítica soviéticas, exige do artista a representação, fiel à verdade e historicamente concreta, da realidade no seu desenvolvimento revolucionário. A fidelidade à verdade e o caráter historicamente concreto da representação artística devem ligar-se com as tarefas da transformação e formação ideológica dos trabalhadores no espírito do socialismo”. Esta definição foi incluída, na década de 1930, no estatuto da Associação dos Escritores Soviéticos, mais conhecida pela sigla RAPP.
Vale a pena comparar essa formulação de Zdanov com o que Leon Trotski escreveu premonitoriamente ainda na década de 1920: “O estilo da arte oficial soviética é denominado “realismo socialista”. Este nome foi certamente criado por algum diretor de alguma associação de artistas. Seu realismo consiste em uma imitação dos clichês provincianos do século XIX. Seu caráter ‘socialista’ está expresso em seu uso de fotografias falsificadas que retratam eventos que nunca aconteceram (…). Oficiais armados com penas, pincéis e cinzel homenageiam, sob a supervisão de oficiais armados com mausers, ‘grandes’ e ‘brilhantes’ líderes que na realidade estão desprovidos de qualquer grandeza ou brilhantismo”. (Citado por Ernest Mandel, em Trotsky como alternativa, São Paulo: Xamã, 1995, pag. 218).
- O conceito de “realismo crítico” foi desenvolvido em vários textos por Lukács. Publicados no Brasil, podemos citar: Marxismo e teoria da literatura (na segunda parte, ”Problemas do realismo”), seleção e tradução de Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; Realismo crítico hoje, Brasília: Coordenada Editora de Brasília, 1969. Em Portugal, João Barrento organizou, fez a introdução e notas e publicou uma antologia sobre a polêmica que envolveu, entre 1935 e 1940, Lukács, Ernst Bloch, Hanns Eisler e Brecht sobre a questão do realismo na literatura. A obra, intitulada Realismo, materialismo, utopia, foi publicada por Moraes Editores em 1978.
- A Nova Esquerda (New Left, em inglês) foi um movimento intelectual e político que surgiu, durante a década de 1960, em vários países capitalistas desenvolvidos, em particular nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Esse nome foi adotado para tentar se diferenciar das organizações da esquerda tradicional, tanto as estalinistas quanto as não-stalinistas, que adotavam o marxismo como referência teórica e, em conseqüência, pregavam a revolução socialista dos trabalhadores para substituir o capitalismo pelo socialismo. Nos Estados Unidos, onde teve alguma projeção política, a Nova Esquerda se associou aos movimentos de protesto contra a guerra do Vietnã e em defesa dos direitos civis que visavam acabar com a opressão de gênero, raça e sexual.
- O que o autor descreve como “ambiguidades de seu comportamento nos eventos críticos de 1956” faz referência à revolução política contra o governo ditatorial estalinista da Hungria em outubro/novembro de 1956. Inicialmente, Lukács integra o governo revolucionário de Imre Nagy, principal dirigente da revolução. Quando, porém, o governo da União Soviética envia tropas militares para reprimir a revolução, Lukács renuncia, propõe a subordinação do partido governista húngaro ao partido comunista da União Soviética e apóia János Kádár, o interventor nomeado pelos invasores. Já Imre Nagy foi afastado do poder e preso e, depois, fuzilado.