O conhecimento – impossível – do Início é, no máximo, o conhecimento do paradoxo. As coisas não existiam e passaram a existir, do nada, em algum momento, mas tudo têm uma origem, uma anterioridade necessária, algo de que se tenha transformado. Ou: as coisas existiram desde sempre e sua única mudança, apenas aparente, é o se terem transformado de umas em outras, de pó em gente, de gente em pó, do pó até partículas cada vez menores e quase infinitamente divisíveis, se não indefinidamente reagrupáveis. Não havia olho que isso visse. Ou: do olho não sobrou o testemunho consciente. Ou: não se revela em voz esse pelo menos um olho. Ou: fala uma língua que não conhecemos. Ou: não sabemos de todo o que diz ainda que nós mesmos usemos das suas palavras, partículas e conectivos de modo mais ou menos impróprio. Ou – é aquilo que não sabemos porque não podemos imaginar nem entender. Uma solução era crer em. Não digo apenas crer feito intransitivo; nem em Deus (seja nominado ou inominável): digo do processo no qual me interessa a ponte. [É na origem que – sonhamos, e pode nem ser real – que: nem o ato de crer precisava de um nome: o espírito-de não apenas pairava, acreditamos que já acreditamos, mas deixava pegadas com marcas na terra.] A crença-em nos dá uma meia certeza confortável e conformada. Podemos sonhar, o tempo convida, com a vida que a civilização, orgulhosa e saudosa, destruiu. Mas não podemos algo melhor e menos contemplativo?
Inda nos encontramos na encruzilhada brasileira que nos define: condenados a um progresso com o qual não nos identificamos e empurrados a um atraso com o qual somos obrigados a nos identificar, como se fôssemos uma reserva de inocência de que precisasse o mundo (os males que o sr. Jean-Jacques nos relegou). A identificação acaba sendo com os escombros do progresso.
A princípio, de tão maravilhoso, o Brasil de que apenas ouvimos falar só pode ser muito distante; e é melhor que permaneça assim, o Brasil da bandeira e do hino que entendemos mal (a sintaxe pelo avesso de um parnasiano), o Brasil da Seleção Brasileira. O de verdade, se existem países de verdade, é o que estamos cansados de ver, o nunca televisionado, e o que preferimos não conhecer: o que aconteceria se o berço esplêndido se tornasse um divã? que diria o filho abandonado que passou tanto tempo da vida querendo ser reconhecido à luz do dia ou ao menos, em segredo, orgulhar o pai? que diria da vergonha adulta de descobrir que o pai além de ausente era fracassado reincidente e, pior, sempre tinha falhado quando tinha tudo nas mãos, e sempre desperdiçava o sacrifício dos outros, o sacrifício dos filhos que nunca reconheceu e dos quais julga que ainda pode exigir respeito?
O pai de vez ausente a gente nunca sabe se é vivo ou se morreu.
O trauma é trauma do que não se teve; do que ainda se esperou apesar de ser melhor não esperar. Esperar é arriscar a decepção; não esperar é entregar-se: às vezes ao pior cinismo, o que nada ensina. Que fazer?
Defender o próprio ser e a sua narrativa, o ser de apenas existir, pode já ser um combate. O ser como positividade pode se negar a uma resposta sobre si. A vida apenas vive e não se explica. O dito mundo ocidental civilizado cultiva bolsões de pobreza e atraso também como um paraíso acessível e barato.
Preciso contar nossa história para fundarmos a nós mesmos. Já não a catarse nem a paisagem turística. Temos que ser nós mesmos para nós mesmos, de novo, ainda. Ser pessoas, por que não? É certo que as coisas são tão fortes que parecem sempre capazes de nos esmagar; a mais leve das fibras artificiais pesa uma tonelada. Mas: se as coisas nos esmagam é necessário que retornem ao seu lugar de coisas; é preciso que sintamos que saem de nossas mãos; que sua forma foi decisão nossa; que poderíamos ter escolhido descartá-las.
É preciso que as histórias tenham se passado, mas elas nunca passam. É como se não houvesse uma separação entre o passado e o presente; porque não há: o início permanece não de recomeçado, mas em continuidade de pesadelo.
Ainda que não se ouça dentro do silêncio a vida ecoa suas vibrações; ainda que não se veja dentro da escuridão há algum tipo de fagulha de viva eletricidade. Onde pode haver mais paz do que tristeza, ou apenas paz, como pede todo berço de origens. – O sussurro no escuro, a voz da sombra, a consciência: fala contra a consciência culpada mas também mina a ilusão, o sonho. O que será não é, diz: apenas do que é se tem certeza, e só a partir dele se pode dizer do futuro, e a partir dele (do que é) se pode pouco ou nada. <Como tanta ausência pode ser tão sólida?
Enquanto isso não ocorrer – enquanto não largamos a ilusão ocidental do progresso – que a nossa falta grite. Não é sozinho que somos pobres; e nós, que somos pobres, não somos apenas pobres. E daqui nos perguntamos: Será que um dia a pobreza será passado pleno e lembrança distante?
Essas perguntas, mais detalhadas, menos explicativas, agressivas como cativantes, feito a jurema preta, de seu nome latino Mimosa hostilis, encontramos no teatro de Rudinei Borges. Em especial, também, em Grão. A lembrança de que as sementes se pegam com a mão, vivas ou mortas, que são a vida vegetal em potência ou traídas. Mas não são coisas.
GRÃO idealização, dramaturgia e coordenação geral RUDINEI BORGES ● encenação e direção DONIZETI MAZONAS ● atuação EDI CARDOSO e SILVANI MORENO ● música original e música em cena JUH VIEIRA ● cenografia e figurino TELUMI HELLEN ● iluminação DECIO FILHO ● fotografia KEINY ANDRADE ● design gráfico VICTORIA DIAS ● cenotecnia ALÍCIO SILVA ● assistência de figurinos e costura MARI MORAES ● produção executiva LEANDRO LAGO ● direção de produção e produção financeira RUDINEI BORGES ● revisão de texto CAIQUE ZEN ● montagem de luz ALEX DUARTE e RONI LIGHT ● registro fotográfico do ensaio geral CLAUDIA MELO ● direção do registro audiovisual LUCIANA RAMIN ● câmeras LUCIANA RAMIN e JU LIMA ● montagem e edição VICENTE MARTOS ● realização NÚCLEO MACABÉA e FOMENTO À CULTURA DA PERIFERIA DA CIDADE DE SÃO PAULO DA SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA
Link: https://youtu.be/EQmUDgv1osg