GARRAFAS AO MAR, CAMARADAS!

Dizia o inestimável poeta, ensaísta e político Manoel Raposo, último integrante de uma singular cepa de comunistas inquestionavelmente autênticos da nossa Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, que os livros possuem dois grandes, infalíveis e impiedosos inimigos: os cupins e as viúvas; os primeiros, devorando sem cerimônia exemplares raros ou vulgares, e as segundas, fazendo desaparecer indecorosamente bibliotecas inteiras, na mesma proporção, voracidade e velocidade de seus parceiros de extermínio.

Mesmo sem saber se tal axioma era de lavra própria do inesquecível pensador, peço-lhe venha, permita-me aparteá-lo: além dos dois arrolados inimigos de livros e, em consequência, escritores, há outros de poderio devastador muito mais letal: o mau consumidor e o leitor inepto; este, ao se sentir detentor do direito de proferir asneiras contra a obra e o autor, apesar de não entender e não compreender ambos, e aquele, depois de adquirir ou receber gratuitamente um volume, deixá-lo esquecido na prateleira de uma estante qualquer, morto perante a vida, feito presa de tenaz tortura mitológica grega.

Eu, velho marinheiro de primeira viagem aos 60 anos, não sustentei grandes ilusões ao debutar, com recursos pessoais, na seara literária, lá pelos idos de 2019. Navegando na experiência de uma aventura anterior, daquela vez nas procelas tumultuosas do mercado musical, quando em 2002 juntei num disco dez composições com minha parceria, e as vendas dos ditos cujos só ocorreram no dia do lançamento, estava ciente que não seria fácil me livrar dos mil exemplares da edição produzida com tanto esmero e dispêndio.

Confesso que a despeito de me achar um sujeito passado na casca do alho, não entendi, no encerramento do contrato com a gráfica, o motivo de ter sido tratado de forma por demais cordial, numa saudação concluída de um até breve, como se eles tivessem certeza que um dia eu voltaria. É que essa coisa de escrever livros é viciante; e eu não sabia!

Pois não é que não se passaram nem quatro anos e eu lá estava de volta! Meu sorriso amarelo contrastava com o semblante vitorioso do dono da gráfica. Lia-se no seu rosto um “eu num disse que você voltava?”. Voltei! Agora munido de mais páginas, o quádruplo das primeiras, de teor mais polêmico, e ainda com a casa empanturrada de caixas e caixas, resultante da experiência malograda anterior.

Falo em polêmicas porque tive a insensatez de me debruçar sobre o documental da vida real de um personagem não menos controverso, cujo perfil foi traçado na oralidade de seus simpatizantes e nas invencionices dos que não lhe tiveram nenhum apreço. Refiro-me a Antônio Conselheiro, o grande líder da revolta de Canudos; rebelião não ocorrida e liderança nunca exercida, posto provas robustas e irrefutáveis indicarem por motivo do conflito a eleição federal de dezembro de 1896, e Conselheiro nem na região estava, quando os primeiros combates se iniciaram.

Marinheiro velho de segunda viagem, achei de embarcar sem cartas náuticas e o controle do leme, numa nau completamente desgovernada, levando aos sete mares a versão do Antônio Conselheiro pacifista, santo da Igreja Católica. Essa tarefa complicadíssima e inglória em mares bravios, reparação de um erro que provocou uma inacreditável injustiça histórica, perpetuação secular em todos os meios de comunicação, de tanta perplexidade que traz pode ser comparada a uma reformulação da História da Revolução Cubana, afirmando-se a não participação de Fidel Castro, que nem na Sierra Maestra estava, iniciada a contenda.

Todavia, não se trata de inverdade a assertiva que reza nada estar perdido, sempre haverá uma voz amiga a confortá-lo, caso não seja possível aliviá-lo de alguns compêndios. A mim a palavra confortante chegou na solidariedade de uma amizade recém-conquistada, explicando-me que se deve escrever sem grandes pretensões, apostando em respostas do além, qual náufrago que despretensiosamente lança ao mar garrafas contando suas desditas. No entanto, dileto e persistente escriba, paira no meu peito o medo de num futuro não muito próximo e promissor, mares desprovidos de esperança estejam tão congestionados do bonançoso artefato, que os prováveis leitores pensem de nós: nossos antepassados foram uns porcalhões, passaram a vida poluindo os oceanos!

Jose Augusto Moita

José Augusto Moita é pesquisador e escritor, além de servidor público aposentado.