FORTALEZA – POBRE E DESIGUAL: O QUE FAZER

Pelo menos aqueles que cursaram o primeiro grau bem-feito (o antigo curso Primário) são conscientes de que, conforme registros documentais, a formação das primeiras cidades ocorreu na região da Mesopotâmia, há cerca de cinco mil anos a.C., onde hoje está situada toda a área territorial do Iraque.

Desde o distante tempo desse registro histórico, entre as muitas funções que as urbes precisam cumprir, nas áreas econômicas, sociais, industriais, de infraestrutura urbana, com suas múltiplas dimensões constituintes do padrão de cidades tal como conhecemos, a principal delas se destina a acolher, servir é cuidar das pessoas em seus distintos estratos. Isto se ancora em um modelo gestor que ofereça todos os serviços públicos continuados para proporcionar aos cidadãos-cidadãs em geral, e não apenas a uma minoria privilegiada, condições de uma vida minimamente digna.

Antes mesmo do surgimento do conceito de cidades globais, no início dos anos de 1980, para designar as metrópoles mundiais com grande poder de influência econômica e cultural em todo o globo, restou provado, pelo menos no Brasil, que os aglomerados urbanos – sedes municipais e dos distritos – há muito não cumprem a sua função precípua, de zelar e oferecer bem-estar para todos os habitantes.

A julgar pelas condições sob as quais vive a ampla maioria da população trabalhadora de Fortaleza, a Capital cearense é um mau modelo, pronto e acabado, de que fracassou no cumprimento de quase todas as funções em favor da população! Ao contrário, maltrata os pobres, pois não cuida das crianças e abandona os idosos. Péssimo exemplo do que ora assinalo é o aumento da quantidade dos moradores de rua. A propósito, algum (a) dos (as) candidatos(as) sabe qual a tamanho dessa população?

Se quiserem conhecer a dimensão da expressa tragédia, sugiro uma visita, das sete da noite em diante, às principais praças e ruas do Centro. O próximo soberano/soberana tem o dever moral e humanitário de enfrentar esse grave problema. Bom começo, sem dúvida, será fazer o censo desse contingente, advertindo para o fato de que se trata de uma classe nômade. No sugerido recenseamento, é determinante, pois, identificar aqueles que se encontram nessa desumana situação e desenvolver uma política de acolhimento e relocação destas pessoas.

Com todas essas mazelas, ainda assim, Fortaleza é considerada belo aglomerado urbano, com quase três milhões de habitantes. É banhada pelos verdes mares alencarianos, com lindas praias de extensas faixas de areia branca, adornadas por jangadas de velas coloridas, e do que restou dos outrora vastos coqueirais, donde sopram ventos constantes que desalinham os cabelos das suas belas mulheres, tornando-as ainda mais exuberantes e sensuais!

Pelas jangadas a vela que zarpam o ano inteiro da Praia do Mucuripe, sob o Sol e a Lua, Fagner, Belchior, Ednardo, Fausto Nilo, dentre outros, navegaram milhas e milhas de poesias e letras de formosas canções, realçando suas belezas. Bem antes, José de Alencar entalhara uma Iracema com lábios de mel, em um cenário de litoral, serras e sertão literários, revelando o talento criativo, a cultura, e a Fortaleza de sua gente, nascida e/ou acolhida por essa Cidade.

A moderna arquitetura exibida pelos luxuosos centros de consumo e opulentas áreas residenciais, ao que se adicionam suas exuberantes belezas generosamente concedidas pela Mãe Natureza, fazem com que muitos finjam desconhecer a existência de outra cidade, diametralmente oposta, densamente ocupada pelos estratos trabalhadores, ironicamente só lembrada em períodos de eleição. Está bem perto, no entanto, de voltar a ser evocada pelos pretensos ‘soberanos’…

Nessa historicamente “invisível” Fortaleza, georreferenciada por milhões de CEPs, discriminados por gênero, raça, cor e orientação sexual, disfarçadamente apelidada, pela elite dirigente, de “cidade oeste” – sinônimo de pobreza, miséria e abandono – cinicamente, seus mandarins insistem na inconsciente tentativa de desconhecer e esconder suas extensas áreas degradadas, onde os serviços básicos de saúde, segurança, saneamento e limpeza urbana não logram chegar.

Não sendo insanos, sabem eles, no entanto, que ali sobra violência, sobejando, também, esgotos a céu aberto, onde crianças brincam, pessimamente alimentadas, ou mesmo famintas, em meio a lama, junto dos porcos, por entre as estreitas ruas e vielas.

Paradoxalmente, por meio do hub aéreo e de cabos submarinos, estendidos aos vários continentes, essa cidade pretensamente moderna se conecta ao mundo, transformando-se em uma aldeia global mcluhaniana, criando, pelo menos na aparência, a imagem de metrópole cosmopolita, economicamente desenvolvida, ao tempo em que, pela aguda pobreza e desigualdades que afloram dos guetos, onde moram os invisíveis e segregados da maioria dos seus cidadãos-cidadãs, se revela um aglomerado urbano paupérrimo, socialmente injusto e ambientalmente degradado.

Aqui eclode o apartheid racial, econômico e social, que persiste e resiste no tempo, com múltiplas evidências, não só do descaso do poder público, como também pelo preconceito, discriminação e racismo estrutural, de parte de uma elite “neo-insensata”, cuja ação dos gestores, no decurso da história, teima em não priorizar políticas efetivas de inclusão para as pessoas mais indigentes, em acelerada pauperização, decorrência do agudo agravamento das condições econômicas no pós-pandemia.

O mais preocupante, para não dizer trágico, é que, quando se examina o cenário de curto e médio prazos, com base no debate em curso pelos grupos de poder e seus (as) pré-candidatos(as), em disputa pela indicação para as próximas eleições, o que se observa é apenas uma paranoia pelo poder nos vários partidos, para escolher aquele que será o ‘soberano’, e um silêncio obsequioso em relação aos gravíssimos problemas da Cidade, conforme mencionado.

Ante essa obscena conjuntura, referenciada nos nomes de maior visibilidade que diariamente ocupam os espaços midiáticos, não é pessimismo afirmar que não se deve esperar mais do que as já conhecidas, mofadas e defasadas ideias, não oferecendo qualquer perspectiva de mudança para reversão dessa vergonhosa e perversa realidade.

Nesta perspectiva, é imperioso fazer um exercício de abstração das graves preocupações que nos afligem no dia a dia, olhar um pouco para as ideias e as promessas feitas por postulantes em eleições passadas, proceder ao resgate dessa memória, para que, assim, reste estabelecida uma análise comparativa com o que está por vir.

Deste modo, por conseguinte, é a nós proibido incorrer em erros de escolhas prejudiciais à Cidade, não só para a Prefeitura, mas, especialmente, para a Câmara Municipal, a expressão maior da representação política fortalezense. A “loira e desposada do Sol”, de Francisco de Paula Ney, precisa e merece ser mais bem-cuidada, e assim oferecer condições de vida digna para todos. Cuidar das pessoas, por via de consequência, é o expresso e grande desafio.

Nesse contexto, a reflexão que se impõe sobre os graves problemas econômicos e sociais que todos enfrentamos – e que deverão se agudizar ainda mais ante a realidade econômica do País – reside no desemprego, que rebenta com maior evidência, e reclama por uma ação imediata para atenuar os seus efeitos. A propósito, não é demais perguntar: algum candidato ou candidata saberia informar o número de pessoas desempregadas em nossa Cidade? O desemprego, de tão grave e urgente, está a exigir uma inadiável ação de geração de trabalho e renda para essa camada populacional.

Aqui o objetivo é chamar atenção dos postulantes que debatam e ofereçam ideias e propostas em seus programas de governo, assim como no horário eleitoral e pelas mídias sociais, acerca de como pretendem arrostar a situação. Sugiro que apresentem modelos de soluções exequíveis e eficazes, fundamentadas e justificadas, e não promessas vazias, como é da tradição que conforma essa cultura política malsã.
No contexto da multidimensionalidade da pobreza e das desigualdades sociais, me cumpre indagar: – qual das (dos) candidatas(os) saberia informar o índice de pessoas vivendo na extrema pobreza em nossa Cidade? Se não souberem, minha sugestão é de que procurem os pesquisadores do laboratório de estudos da pobreza-LEP/CAEN/Universidade Federal do Ceará, onde encontrarão vários estudos sobre essa trágica realidade.

De tão grave esse problema, é imperioso que os (as) ‘soberanos’(as), ungidos (as) pelos seus partidos, não se conformem apenas em acudir essas pessoas por via das políticas de renda mínima do Governo Federal – (bolsa família), mas façam propostas de políticas complementares plenamente realizáveis que permitam a essa população estabelecer os próprios meios de sobrevivência e independência.

Considerando a magnitude e sua complexidade, as políticas pensadas com esse objetivo devem ser operadas de acordo com as condições econômico-financeiras da Prefeitura, pois é de conhecença geral que uma política pública, para ser viável e ter efetividade, tem que responder a pelo menos quatro indagações:
i) que evidências justificam sua estruturação?
ii) Quanto custa?
iii) Qual a fonte dos recursos?
iv) Quem vai pagar?
Uma ação revestida dessa importância e alcance social não se resolve com promessas genéricas, sem qualquer fundamentação, segundo historicamente se observa em períodos eleitorais.

Comentários e críticas para: [email protected]

Arnaldo Santos

Arnaldo Santos é jornalista, sociólogo, doutor em Ciencia Política, pela Universidade Nova de Lisboa. É pesquisador do Laboratório de Estudos da Pobreza – LEP/CAEN/UFC, e do Observatório do Federalismo Brasileiro. Como sociólogo e pesquisador da história política do Ceará, publicou vários livros na área de política, e de economia, dentre eles - Mudancismo e Social Democracia - Impeachment, Ascenção e Queda de um Presidente - sobre o ex-Presidente Collor, em 2010, pela Cia. do Livro. - Micro Crédito e Desenvolvimento Regional, - BNB – 60 Anos de Desenvolvimento - Esses dois últimos, em co-autoria com Francisco Goes. ​Arnaldo Santos é membro da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo – ACLJ, e da Sociedade Internacional de História do século XVIII com sede em Lisboa.