Já fui candidato (uma delas em 1988 contra o Ciro Gomes, disputando a Prefeitura de Fortaleza, quando fui apoiado pela então prefeita Maria Luíza) e coloco tal momento como uma mancha curricular.
Não precisava ter vivido esta experiência para saber que tal iniciativa representava a minha/nossa não intencional legitimação institucional da opressão estatal inescapável e inerente à função do Estado; pode-se saber que o fogo queima sem precisar queimar as mãos na chama.
Mas, se houve algo de positivo na minha experiência como secretário de finanças da prefeitura municipal de Fortaleza, foi a dúvida que ali se iniciou (e posteriormente se comprovou) da disfunção revolucionária que isto representa perante o imaginário popular e de que nunca deveria ter assumido tal função.
Os anos de 1986/1988 (o triênio para completar o mandado tampão dos prefeitos de capitais, que até então eram nomeados por governadores, e para ajustar o calendário eleitoral), eram particularmente difíceis do ponto de vista da administração financeira municipal, por conta da falta de autonomia financeira fiscal das capitais, que somente viria em 1989, após a promulgação da Constituição de 05 de outubro de 1988.
Maria Luiza Fontenele – Foto: R
No nosso caso, como primeira administração do PT para um cargo executivo importante no Brasil, o quadro se agravava por diversos fatores, quais fossem:
– não tínhamos parlamentares municipais do nosso partido de então;
– só para 1987/1988 é que elegemos dois deputados estaduais em meio a 46 parlamentares;
– não tínhamos nenhum parlamentar federal do PT no nosso Estado;
– fizemos cerrada oposição ao ex-presidente José Sarney, que fora presidente do partido da ditadura, o PDS, mas que num passe de mágica e morte, após a queda da mesma ditadura, tornou-se presidente do Brasil pelo PMDB, um partido criado pela ditadura para ser oposição de mentirinha. Coisas somente possíveis na nossa terra brasilis, e que depois virou aliado do PT na política de conciliação de classes então adotada, e que nos levou, entre outras coisas graves, a sermos expulsos do dito cujo;
– sofremos oposição do PC do B (por opção conciliadora deles havida desde os primeiros anos da redemocratização, conforme podem bem se lembrar aqueles que têm boa memória ou consultem a história) e do próprio PT, na medida em que nos diferenciamos na linha programática e da ajuda financeira ao partido e aos seus candidatos (este tipo de “ajuda” somente se torna substancial com a corrupção que nunca praticamos);
– sofremos a mais virulenta oposição e boicote empresarial da direita, que queria demonstrar a inviabilidade administrativa de um projeto revolucionário por dentro da administração pública (e nem precisavam de tanto ódio e esforço porque a própria realidade conspirava contra nós, e porque até eles mesmos não conseguem demonstrar que são capazes de administrar bem o inadministrável, ou seja, o aparelho de Estado capitalista no sentido de prover suficientemente as demandas públicas básicas, e por isso perdem algumas eleições majoritárias mesmo com todo poderio econômico).
Mas, mesmo assim, conseguimos equilibrar as finanças públicas num padrão de receitas/despesas razoavelmente compatíveis (até porque a nós não nos era permitido nos endividarmos e éramos obrigados a pagar rigorosamente o tal serviço da dívida impagável já existente anteriormente);
– elaboramos um sem número de projetos sociais que ficaram engavetados até a posse do novo prefeito, Ciro Gomes, quando foram liberados, juntando a fome com a vontade de comer (além da autonomia financeira, Ciro era então aliado do governo estadual e federal) e se tornou em um ano o melhor prefeito do Brasil, laurea de mérito pessoal que lhe foi distinguida e com a qual foi guindado no ano seguinte à condição de governador do Ceará, e posteriormente para outros cargos, tornando-se personagem da política nacional;
– mas jamais negamos as nossas bandeiras revolucionárias, ainda que num espaço de poder municipal e sob tais condições como se isto fosse quase um suicídio eleitoral desassistido!
Involuntariamente, prestamos um serviço ao capitalismo ao equilibrar as finanças públicas municipais, e nos restou a lição e compreensão sobre tal impropriedade.
O capital expulsa os revolucionários do seu aparelho de estado como um vírus no interior seu organismo político estatal a seu serviço opressor!
Agora, quando assisto enfastiado ao debate político eleitoral, sinto a sensação de estar assistindo a um mesmo filme velho e ruim, daqueles tão mentirosos que nem são ficção, nem realismo fantástico, mas simplesmente um espetáculo farsesco mal interpretado por canastrões sem brilho e com roteiro pobre.
Os candidatos não são desconectados da realidade, vez que denunciam as mazelas não resolvidas pelo Estado, mas são desconectados do nexo causal dos problemas. Nenhum deles denuncia ou se refere aos problemas apontados como sendo culpa da obsolescência do capitalismo, mas sempre atribuem o fracasso a questões administrativas, sem poder (e nem querer) dizer que o dito cujo, que sempre foi ruim, passou agora a ser inviável.
E não o fazem por estarem presos os padrões sistêmicos pelos quais pretendem se eleger. Afinal, não se deve cuspir no prato que se come!
Os estados nacionais estão falidos justamente porque o capitalismo atingiu o seu crepúsculo existencial após cumprir o itinerário histórico iluminista de nascimento e vida, ora encaminhando-se para a morte histórica, mas não sem antes tentar nos levar para o abismo de uma hecatombe nuclear ou ecológica como resultante de sua insanidade.
A questão que ora se nos apresenta não diz respeito a questões meramente administravas e constitucionais burguesas, ou ainda de antagonismo entre ditaduras decrépitas militaristas e sanguinárias em oposição a democracias burguesas sociais-democratas bem-intencionadas e sensíveis do ponto de vista humano, mas equivocadas.
O foco das nossas mazelas sociais se situa em questões estruturais relativas a um modo de relação social subtrativo da riqueza material coletivamente produzida graças à mediação social feita pela riqueza abstrata.
Dizia Marx que o inferno está cheio de gente bem-intencionada!
Os candidatos, na sua pregação eleitoral em busca do voto, não podem ser sinceros sob pena de cometerem sincericídios. Têm que vender soluções simples para problemas estruturais complexos que estão fora do alcance das receitas fiscais cada vez menores em relação ao atendimento das demandas sociais.
O governante, tal qual um surfista numa onda, não altera a estrutura da onda, mas apenas nela se equilibra para chegar na praia de pé. Com a passar dos anos vem o inevitável desgaste, como agora está a ocorrer com Boçalnaro, o ignaro, que em menos de quatro anos já não pode vender a ideia de ser um oursider da política, que nunca foi;
– não pode dizer que é um combatente da corrupção (como fez, imitando Jânio Quadros e Color de Melo) quando se descobre seu milionário patrimônio familiar imobiliário comprado com dinheiro vivo;
Intervalo de 29 anos entre uma foto e outro
– nem que é um liberal na economia, quando age como mais um nacionalista estatizante militarista em busca de poder;
– nem que a prosperidade de todos vai ocorrer na terra prometida, quando se constata que temos inflação alta, desemprego alto, queda do PIB, e outras mazelas próprias a um capitalismo em fim de festa.
O PT de Lula, não foi o PT de Dilma, simplesmente porque a crise cíclica capitalista é cada vez mais frequente e intensa (não se trata de mera marolinha), como essa de 2008/2009 que se prolonga até os dias de hoje.
A crise do capital consiste na incompatibilidade de um modo de produção de mercadorias que ora substitui substancialmente o trabalho abstrato humano (capital variável) pelas máquinas e computadores (capital fixo) e mata a galinha dos ovos de ouro (esse mesmo trabalho abstrato) numa proporção bem maior do que os novos nichos de mercado que surgem, e agora com agravantes climáticos, pandêmicos e guerras por ele engendradas.
Urge que nós reflitamos sobre o colapso de uma mediação social ou relação social baseada em pressupostos caducos consubstanciados nas categorias capitalistas valor e trabalho abstrato representadas pelas mercadorias (corporificadas em objetos e serviços) e o dinheiro (mercadoria especial, a única que não tem valor de uso em si), que mais não são que coisas que ganham dupla personalidade (valor de uso e valor de troca), simultaneamente reais e abstratas.
A fase desenvolvida do capital, ora no seu ocaso, serviu historicamente para promover a escravização indireta em substituição à escravização direta feudal que se configurava como explicitação evidente da nossa irracional desumanidade em processo de decantação.
Mas acontece que a dinâmica social, a que podemos chamar de dialética do movimento social, impulsionada pelas contradições do capital que não representou o fim da história, mas apenas um estágio temporal curto desta (a fase adulta do capitalismo não tem mais de que 200 anos), está a nos cobrar uma nova revolução social nos costumes, no nosso sistema de produção social e na nossa organização estrutural de base.
Endeusar a constituição burguesa não é antídoto eficaz contra qualquer constituição ditatorial também burguesa, mas apenas uma promessa de descrédito no curso prazo que pode levar muitos à crença nos arbítrios propagandeados por ideias totalitárias (tão em voga, mundo afora e sem pejo) por falsos profetas e salvadores da pátria como aconteceu em 2018, numa repetição histórica que pode ocorrer novamente após um ciclo breve de decepções burguesas prenunciadas (Jânio, Collor e Boçalnaro, o ignaro, são exemplos de retrocessos cíclicos).
Defender os ganhos civilizatórios conquistados a duras apenas pela humanidade requer consciência e tenacidade de ação, e tais atributos não significam deitar nos louros de algumas vitórias que podem escorrer pelos dedos como se pudéssemos prender a água numa só mão fechada.
Vivemos a fase da contradição inconciliável entre forma e conteúdo sociais em processo de mutação acelerado e isto requer posturas avançadas e destemidas.
Não devemos quebrar o espelho por não concordarmos com aquilo que ele nos mostra, mas refletirmos sobre a forma espelhada e, conscientemente, pegar o touro (como aquele, de Wall Street) pelo chifre.
Na falta de um projeto social da humanidade por um mundo uno, o que se observa é a guerra por uma nova configuração geopolítica de poder, com a clara formação de blocos capitalistas em disputa pela hegemonia capitalista, como o euroasiático, tendo a frente a Rússia e a China, de um lado, e o ocidental composto por Estados Unidos e União Europeia do outro, disputando poderio militar genocida.
O pior é que se formam lados políticos de defesa de um ou de outro bloco, que como diria o brilhante dramaturgo Plínio Marcos, mais parecem dois perdidos numa noite suja.
Falta, portanto, um debate social científico sobre causas e consequências, que infelizmente não é permitido que seja feito no âmbito da corrida eleitoral;
– que não são feitos amplamente no âmbito das academias (sejam elas privadas ou públicas);
– e nem no universo da mídia empresarial, que tem objetivos inversos a tal propósito libertador e que são instituições presas ao imediatismo da sobrevivência corporativa de cada segmento.
Assim, adia-se o enfrentamento social até o limite perigoso da realidade catastrófica que pode nos extinguir como espécie.
Minha análise é deveras trágica, mas mais trágica ainda é a realidade de um Brasil que sendo grande exportador de alimentos para o mundo tem parte da sua população faminta, seja rural ou das cidades cindidas entre o luxo dos bairros ricos e a pobreza dos bairros pobres onde residem os catadores de lixo dos lixões suburbanos, ou abrindo sacos de lixo para comer um alimento apodrecido!
Os anos vindouros certamente serão bem difíceis, mas podem também ser libertários, dependendo das nossas ações conscientes, nunca das nossas omissões inconscientes.
Viva Jean-Luc Godard e Guy Debord, heróis do premonitório maio de 1968 francês (ambos suicidas por não suportarem viver numa vida social desumana e caótica).
Dalton Rosado.