Acabo de ler um livro desconcertante, e lamento muito que todos não o façam num momento tão delicado de nossa história. Escrito por uma intelectual posicionada à direita do espectro político, Madeleine Albright, ex-diplomata americana nascida na antiga Tchecoslováquia, o livro intitula-se Fascismo: Um Alerta, e foi eleito best-seller número 1 pelo New York Times, em 2018.
Trata-se de um libelo de acusação ao que Albright define como uma “doutrina de raiva e medo”, expressão com que abre o livro a partir de suas recordações mais traumáticas das monstruosidades do nazifascismo. Ela era, à época, 1939, a menina pequena que mal havia dominado a arte de caminhar, como diz nas primeiras linhas do livro, quando tropas alemãs invadiram a cidade de Praga iniciando o regime de terror que desencadearia na Segunda Guerra Mundial.
Fascismo: Um Alerta, como o próprio título sugere, não é, todavia, mais um livro a desfolhar os horrores do totalitarismo de direita nascido do poder de convencimento de um desajustado chamado Adolf Hitler. Antes pelo contrário, o livro tem por objetivo alertar contra os riscos que vivem países de diferentes continentes em face da onda de direita que ameaça varrer, entre outros, o Brasil, desde que Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos. “Se pensarmos no fascismo como uma ferida do passado, que estava quase sarada, diz ela, colocar Trump na Casa Branca foi como arrancar o curativo e cutucar a cicatriz”.
Albright constrói sua narrativa em bases quase socráticas: Por que a democracia está hoje “sob ataque e recuando”? Por que tanta mobilização de esforços para se botar por terra o que se conquistou com o sangue de milhões de pessoas? Por que este abismo que separa ricos e pobres só tem aumentado e tende a continuar aumentando? Por que se têm aberto fissuras imensas entre cidade e campo, detentores de educação superior e os que não a possuem? E por que, arremata, a esta altura do século XXI, voltamos a falar de fascismo?
Reconhecendo o peso dos EUA sobre o mundo, a autora levanta a reflexão que me parece crucial: “Os Estados Unidos já tiveram presidentes imperfeitos antes; na verdade, é só o que tivemos. Mas nunca havíamos tido uma autoridade máxima no Executivo, na era moderna, cujas declarações e atos entrassem em tamanho choque com os ideais democráticos”. Dialetizando, pois, com os pressupostos do capitalismo a que serviu por tantos anos (ela foi embaixadora dos EUA durante o governo de Bill Clinton), Albright enxerga o mundo como “um campo de batalha onde cada país está decidido a dominar todos os outros; onde nações competem como empreendedores imobiliários no intuito de arruinar rivais e espremer cada centavo de lucro de cada acordo”.
Num rompante didático que é mesmo o eixo central do livro, Albright empenha-se em definir o que é o fascismo e em como saber identificá-lo: “O fascista é nacionalista, autoritário, antidemocrático”. Referindo-se a um grupo de alunos seus num curso de pós-graduação ministrado por ela em Georgetown, Albright ecoa as palavras de alguns desses alunos para deixar ainda mais claro o perfil de um fascista e suas práticas mais comuns: “O medo é a razão de o alcance emocional do fascismo se estender a todos os níveis da sociedade. Não existe movimento político que floresça sem apoio popular, mas o fascismo depende tantos dos ricos e poderosos como do homem ou da mulher da esquina — dos que têm muito a perder e dos que não têm nada”.
Fascismo: Um Alerta, de Madeleine Albright, é um livro importante, sobremodo por extrapolar as fronteiras daquilo que, no espectro político, se define como esquerda, o que isenta suas motivações políticas num momento em que o mundo assiste, impotente, à agonia dos valores da democracia. É nessa perspectiva, por sinal, que a intelectual proporciona ao leitor uma análise que não dá margem à objeção ou resposta: “Enquanto uma monarquia ou ditadura militar são impostas à sociedade de cima para baixo, a energia do fascismo é alimentada por homens e mulheres abalados por uma guerra perdida, um emprego perdido, uma lembrança de humilhação ou sensação de que seu país vai de mal a pior. Quanto mais dolorosa for a origem da mágoa, mais fácil é para um líder fascista ganhar seguidores ao oferecer a perspectiva de renovação ou prometer restituir-lhes o que perderam”.
Ao que acrescenta: “Para alimentar o fervor, fascistas tendem a ser agressivos e militaristas”.
“Ainda mais perturbadora, afirma, é a habilidade com que regimes inescrupulosos e seus agentes espalham mentiras por websites fajutos e pelo Facebook”. Para ela, “a tecnologia possibilitou que organizações extremistas erguessem câmaras de eco em apoio a teorias de conspiração, falsas narrativas e visões ignorantes sobre religião e raça”. Eis o alerta de Madeleine Albright.