Fabricantes de mentiras (1)

Os boatos, integrando os rumores, os falatórios em segredos, constituem uma das mídias mais antigas da comunicação humana, por diversas razões. A começar pela fugacidade de sua ação, simplesmente podem aparecer como desaparecer; também pela proibição no sentido de que não é uma noticia formal.  Por isso, podem ser compreendidos como segredos compartilhados, algo que os tornam provavelmente tão atraentes,  e também perigosamente sedutores, não só pelo perfil caricatural, mas como fenômenos comunicativos que precedem, parodiam, subvertem e realimentam conversas e diálogos, mantendo o frescor  da notícia.

O propósito deste artigo, com o título de Fabricantes de Mentiras, é tão somente abordar esse fenômeno social chamado de boatos, para termos uma primeira linha de compreensão, para sentir o seu peso e como eles podem ser transformados em fakeNews.

Normalmente, eles são mananciais noticiosos disformes que circulam ao sabor das contribuições coletivas, segundo uma ética bem definida e uma estética bastante esgarçada, capaz de conter uma variada gama de produtores e replicadores. Constituem  uma espécie de “onda ” que nos leva à inclusão da “ressonância” e, nesta compreensão, à suposição de que o motivo inicial que lhe dá impulso tende a perder força na complexidade de suas consequências.

O motivo selecionado, ensina Luiz Carlos A. Lasbeck, funciona como um motor, propagando ondas sequenciais que confirmam as anteriores e criam expectativas de outras. Motivações localizadas – mas dificilmente identificadas fisicamente – são responsáveis pelo acionamento desse “motor”. E  quando o fazem acionar desejam reverter, inverter ou subverter a sequência de fatos ou situações que conflitam com interesses específicos. A propagação do boato é essencial à realização desse objetivo, tornando-se, não sem propósito, sua razão de ser e manter-se como tal. (Os boatos além e aquém da noticia versões não-autorizadas da realidade, LuminaFacom/UFJF – v.3, n.2, p.11-26, jul./dez. 2000 – www.facom.ufjf.br, acessado em 25/03/2023).

Na grande maioria dos casos, os boatos constituem a primeira forma de desinformação, embora não deva ser confundido com fake News. Como meia verdade,  via de regra, tem um conteúdo parcial de verdade, do tipo “onde tem fumaça há  fogo”, porque “trata-se de uma proposição ligada aos acontecimentos diários, destinada a ser aumentada, transmitida de pessoa a pessoa, habitualmente através da técnica de ouvir dizer, sem que existam dados concretos capazes de testemunhar sua exatidão”. Noutras palavras: mesmo com base na realidade, “é uma declaração a ser aumentada”, mais ainda, “divulgada sem verificação oficial” (Jean-Noel Kapferer, Os boatos o mais antigo mídia do mundo, tradução de Ivone da Silva Ramos Maya, Forense Universitária,1993,  p. 05).

A propósito desse aumento, ou exagero da notícia, sempre se tem destacado a verdadeira índole de um boato como um mau exemplo da comunicação, produzindo  ojeriza a eles porque, na maioria das vezes, funcionava como um ancestral da desinformação, semelhantemente as fake News, causando estragos. Não  parece honesto, todavia, generalizar, tendo em vista que essas formas podem adquirir, excepcionalmente, função social, quando antecipam fatos que beneficiam as coletividades.

Não somos a favor dos boatos, mas esse esforço de inocular as sociedades contra as formas mais virulentas de superstição, desinformação, falta de entendimento e pânico parece louvável. “Seria absurdo contemplarmos a reedição do contágio do engano em nosso meio circulante. Contudo, vale a pena considerar o efeito que esse nobre esforço pode vir a ter sobre a ecologia da psique”, porque “há sempre espaço para a esperança” (Mitchell Stephes, História das comunicações, do tanta ao satélite, tradução de Elena Gaidano,  Civilização Brasileira, 1993,   p.655) .

Talvez exista uma necessidade humana para a replicação de boatos quando se observam suas fontes, utilidades e momentos, vendo-se que eles não se produzem por acaso. Existem endereços para os quais foram criados. São casos de narrativas envolvendo candidatos nas eleições, onde esses enredos expõem a vida privada dos postulantes aos cargos majoritários ou proporcionais, como ocorre também no cotidiano das empresas, ou, ainda, em concorrência por cargos executivos, pelejas sentimentais, sem poupar-lhes a vida íntima, os segredos que porventura sejam plausíveis ou absurdos, sempre coincidentes em geral com o calendário ou normas e editais de disputas.

Se já não o dissemos é preciso destacar: os boatos são construções coletivas e muito bem guardadas no inconsciente coletivo. Evidentemente, as deliberadas tentativas de ocultar as fontes de boatos constitui uma estratégia social, aliando o útil ao agradável. Isso porque, em primeira linha, nos remete a universo imaginário do complô, das teorias conspiratórias, da manipulação propriamente dita, o que constitui um delito, um desvio, uma interferência abusiva, pessoal, que conta com o silêncio daquele que se interligam com aquele propósito, entre sujeitos que comungam o mesmo sentimento, assim, socialmente acobertado, um crime perfeito que não deixa rastro, ao mesmo tempo, útil nessa cadeia que gera uma multiplicidade de fontes, preservando o interesse na “anônima” divulgação que pode produzir vantagens ou prejuízos.

Agora, além dessa preservação das fontes, com um caráter misterioso, ainda assim o púbico espera a chave de sua compreensão. Acontece que essas chaves o publico já as possui. A rigor, ele não goza de nenhuma virtude que ultrapasse o que realmente é, porque ele depende de nós, será o que quisermos que seja no momento em que somos também emissores desses rumores.

Sem alardear mais uma vez sua função, os boatos têm semelhante utilidade de um sino que replica diversos avisos. Constitui um alerta, nas entrelinhas, uma informação urgente que precisamos difundir e comunicar de forma instantânea.  Antes de transmitir aos outros integrantes de uma comunidade, não há tempo para checagem, se é falso ou verdadeiro, não importa no momento, mas a sua existência que justifique sua divulgação, tal o tilintar dos bronzes que convoca a todos sobre a hora em que vai se iniciar a celebração de um culto religioso, ou a ocorrência de uma missa de sétimo dia.

EM BUSCA DE UMA DEFINIÇÃO

Hoyler entende boato como a notícia que, embora não corresponda à realidade, se apresenta de difícil comprovação e, além disso, de grande interesse, o que determina sua intensa circulação entre as pessoas. Aliás, diz ele, em nossa conversa cotidiana recebemos e transmitimos vasta lista deles. Assim, chamaremos de boato aquela noticia que preenche nossos diálogos e cujo objeto não é outro senão trocar gentilezas com nossos amigos e muni-los de informação. Nesse câmbio, ao passar um boato ao amigo, não pretendemos fazer mais do que aquilo que fazemos num inocente “bom dia, que bela manhã não é verdade?” Mas a grande maioria dessas mensagens tem intencionalidade e malícia.

O melhor conceito de boato, descrevendo todos os seus contornos de definição, encontramos em crônica de Machado de Assis, datada de 14 de novembro de 1864, da série Ao Acaso, colhido em sua Obra Completa, volume 04, sobre um desmentido, algo extraordinário que aconteceria naquele ano. Escreveu o autor de Memórias Póstumas de Brás Cuba:

“O boato recebeu esta semana um desmentido solene. O dia 10, que se antolhava tempestuoso à imaginação pública, correu calmo e indiferente, como os mais dias. A cidade amanheceu em pé e de pé se conservou até hoje. O obituário foi regular; só a doença (e a medicina, acrescentaria Bocage) ceifou algumas espigas na seara humana”.

“Pobre boato! Em compensação, se não acertou em uma coisa, afirma-se que acertará em outra (…) Passo em silêncio essas outras coisas em que dizem que o boato acertará”

“Teoria do boato” é o título de um livro que ainda não se escreveu, e que eu indico ao primeiro escritor em disponibilidade. O assunto vale a pena de alguma meditação”.

É que o boato – não me refiro ao boato das simples notícias que envolvem caráter público e interesse comum – é uma das mais cômodas invenções humanas, porque encerra todas as vantagens da maledicência, sem os inconvenientes da responsabilidade”.

A verdade tem uma telegrafia mantida pelo Estado. O boato é a telegrafia da mentira. Algumas vezes esta acerta e aquela mente, mas é por exceção.

Quando um homem, por motivo de ódio, ou por simples pretexto de amizade, quer fazer correr a respeito de outro uma calúnia, começa por comunicá-la ao primeiro amigo que encontre, acrescentando tê-la já ouvido de outrem. O meio é infalível; dentro de uma hora o segredo tem corrido cem bocas, e está convertido em boato. Alguns simplórios têm mesmo o preconceito de que nada corre em público que não tenha um fundamento de verdade – preconceito que determina no espírito de alguns jurados a condenação de todos os que são acusados perante a justiça”.

É sabido que a notícia de uma boa ação nunca passa de meia-dúzia de ouvidos, isto por duas razões, a saber: a primeira é que, como ordinariamente é o próprio autor quem a revela, com as devidas precauções da modéstia, o espírito revolta-se contra essa maneira de levantar uma estátua no coração do público; a segunda, é que uma boa ação nunca aparece ornada dos singulares atrativos de que se atavia uma ação escandalosa, nem possui aquele sabor apimentado que dá vontade de provar e dar a prova”.

Deste modo as boas ações que praticamos não passam da nossa rua, mas as más ações que nos atribuem vão de um extremo a outro da nossa cidade. Esta é a regra – a exceção é o contrário.

Tudo isso graças a essa coisa misteriosa, cômoda, impalpável, veloz como o raio, como ele fulminante, a que se dá o nome de boato

BOATOS MATAM OU PRODUZEM PREJUÍZOS

Antes de tudo, para que funcione um boato,  ele precisa de pelo menos uma pessoa para criá-lo, ocultando essa autoria, mas atribuindo-a a outros, para depois disseminá-lo, passando a mensagem a outros sujeitos para modificá-lo e transmiti-lo. Portanto, entender como um boato se espalha ligeiramente é o primeiro passo para evitá-lo, ou afastá-lo. 

É possível que muitas das conversas cotidianas que mantemos diariamente estejam cheias dessas referências, dessas trocas. Eles estão naturalmente  imersos na sociedade. De fato, é algo fugaz, porque tenta se esconder através do disfarce da informação verdadeira, de sorte que a sua veracidade está na dúvida, na reticência, de tal sorte que o boato não pode ser manifestamente corroborado, ainda que aceita no primeiro momento sua inteira adesão e repasse.

Normalmente, eles são gerados e transmitidos  boca a boca, embora seja verdade que, às vezes, eles também podem ser propagados pela mídia. Os boatos surgem, no geral, para condicionar o pensamento ou o comportamento das pessoas com um propósito específico, seja o convencimento de uma ideia que esteja ainda a acontecer ou que nunca aconteça.

Por exemplo, uma grande empresa pode lançar boatos sobre a situação financeira de outro concorrente. Falar em atraso no pagamento de serviços,  furar compromissos, possuir títulos protestados, criando insegurança entre os clientes e trabalhadores, com o objetivo de gerar um clima negativo, visivelmente desfavorável ao rival, com intensa prejudicialidade.

Os boatos podem realmente causar mortes, mas quando não causam, produzem danos à imagem e diversas consequências de natureza criminal e civil.  No âmbito da politica nacional, há alguns anos, a notícia de que o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) iria desistir do mandato e sair do país após ameaças contra sua vida motivou uma série de noticias mentirosas sobre o parlamentar.Teorias conspiratórias nas redes sociais ligaram o psolistaAdélio Bispo de Oliveira, preso por esfaquear o presidente Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral.

A desinformação movidas por boatos também atingiu a deputada Maria do Rosário (PT-RS), que foi falsamente acusada de empregar a mãe e a irmã do mesmo criminoso em seu gabinete, o que foram comprovadamente classificados como falsos, posto que o Ministério Público  Federal, em nota,  informou que “no âmbito da Procuradoria Geral da República não consta nenhuma investigação aberta tratando deste objeto”.

No plano mais sensacionalista, jornais americanos já divulgaram a morte de Paul McCartney em matéria baseada em suposição comentada pela rádio RussGibb, como fez o matutino Michigan Daily ao lançar a seguinte manchete: “McCartney está morto, morreu: novos índices os revelam”. Fred Labour, editor da coluna pop, escreveu: Paul morreu num acidente de carro, no inicio de novembro, após ter deixado os estúdios da EMI, cansado, triste e deprimido.

Esses índices, segundo garante a matéria, estão na parte interna do álbum Sargeant Pepper, onde o cantor tem no braço um emblema OPD – officialy pronounced dead – que o considerava oficialmente morto, além do fato de que na imagem da contracapa, os integrantes do conjunto estão postados em frente, exceto Paul.

Ainda conforme o artigo, os Beatles teriam deixado outros indícios da mesma natureza: na capa do Abbey Road, por sua vez, sem se preocupar com o lado artístico dessas imagens, John Lennon está vestido como um pastor, onde encomendaria a alma de Paul; o baterista Rigo Star veste preto, lembrando um papa-defuntos, ou um bruxo de New Orleans, enquanto George Harrison, em traje de operário, certamente estaria pronto para cavar o túmulo.

Boatos sobre mortes que nunca aconteceram não parecem ser a regra. Noticias sensacionalistas envolvendo supostas irregularidades relativas à malversação de dinheiro público já causaram suicídios. Em 1979, o ministro Robert Boulin, que trabalhava no governo Valery Giscard D’Estaing, teria se suicidado por razões puramente politicas, que reportam a um escândalo imobiliário. O mesmo ocorrendo no Japão, em 2007: o ministro da agricultura Toshikata Matsvoka, envolvido com uma série de denúncias  sobre malversação de direito público, horas antes de apresentar suas explicações perante o parlamento, seguindo uma tradição naquele país de cometer suicídio como forma de escapar da humilhação pública, se enforcou (Ministro japonês comete suicídio, in O Estado de SP, 2007,   https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/327930/noticia, acessado em 25/03/2023)

O exagero da noticia sobre calamidades também conduz â morte por outros efeitos indiretos. Em meados dos anos 70, teve inicio a propagação de uma notícia de que a barragem de Tapacurá teria estourado e, como o reservatório tinha a capacidade máxima de 94, 2 milhões de m³, a capital pernambucana seria destruída pelas águas em poucas horas. “Tapacurá estourou!” era a informação replicada por todos, provocando histeria e pânico em toda a cidade.

Durante cerca de uma hora, a população recifense ficou apavorada, correndo de um lado para outro sem saber para onde ir. Mulheres desmaiavam; carros não respeitaram sinais e trafegaram em alta velocidade na contramão; guardas de trânsito abandonaram seus postos, provocando acidentes e atropelamentos. Os ônibus foram invadidos fora das paradas por aflitos passageiros, ao mesmo tempo em que outros, apavorados, saltaram pelas janelas. Bancos, comércios e repartições públicas fecharam as portas. Até doentes internados em hospitais abandonaram ambulatórios e enfermarias. Sem dúvida, esses boatos causaram um verdadeiro caos.

Somente após insistentes boletins das emissoras de rádio e televisão, alguns na própria voz do governador do Estado, desmentindo categoricamente o boato, a vida da cidade foi aos poucos se reordenando. A Polícia Militar também divulgou nota oficial informando que prenderia quem fosse flagrado repetindo o boato. O tumulto provocou três mortes por ataque cardíaco, dezenas de pessoas ficaram feridas e com crise nervosa, atendidas em hospitais públicos e particulares (Caso de Itapacurá norteia estudos sobre processo de construção e de propagação de boatos alarmistas, diariodepernambuco.com.br/noticia,vidaurbana,2018, acessado em 25/03/20023)

O boato pretende matar também corporações. Não havia noticias de falências da empresa, mas na linha de esmaltes dégradés que levavam o nome da atriz Bruna Marquezine, esse produto sofreu com a acusação de que  continha grande quantidade de chumbo e, portanto, não poderia ser usado por gestantes, segundo informaram em conversas e posts disponibilizados de forma ociosa, sem nenhum critério técnico.

A fabricante negou nas redes sociais dois dias depois. Mas ambas as versões permaneceram no ar durante anos. Classificado o boato como fruto da imaginação do público, sem saber quem pudessem tê-lo iniciado, inclusive sem respaldo científico, esta acusação causou preocupação e comoção social, colocando em dúvida a integridade e responsabilidade da fabricante, criando uma crise de imagem para a artista que licenciou seu nome, com visíveis perdas e danos comerciais.

UTILIDADE DOS BOATOS

Propagar uma noticia, na prática social que nada expressa em particular, salvo vagos sentimentos de amizade com o nosso interlocutor, substitui um incômodo e embaraçoso silêncio. É tão somente uma das formas em que se processa a troca de boatos, o que quer dizer, noutras palavras, que eles não são assim tão voluntariosos e gratuitos. Longe disso, existem muitos boatos que estão longe de ser ociosos: são até profundamente intencionais e pretensiosos, pois apontam fins determinados e servem a importantes objetivos emocionais.

O certo é que a natureza exata desses fins não o saberiam dizer nem o transmissor nem o receptor do boato. Sabem tão somente que o boato lhes é interessante, necessário ou não, mas lhes convém de alguma maneira, de forma até certo ponto misteriosa, parecendo acalmar sobre uma incerteza intelectual e uma ansiedade íntima.

Para Hoyler, os boatos variam muito entre si. Às vezes, vemo-los preencherem com um pouco de tempero uma conversa ociosa, outros desencadear torrentes de preocupação ou até de violência. Nem sempre seu âmbito é restrito, pois quando propagam mesmo, são milhões que ouvem e transmitem a informação imprecisa. Outras vezes o boato surge e facilmente se desgastam, ou desafiam o tempo, cristalizando-se em lendas imorredouras. Quer seja, porém, fugaz ou duradouro, limitado ou muito extenso, o fato é que o boato, como fenômeno social, existe na intimidade de qualquer cultura.

Na grande maioria, os boatos são causados pela incerteza e medo de alguma perda profissional ou amorosa. Uma empresa estava empenhada num processo de racionalização, exemplifica Hoyler, levando-se em conta que a sua produtividade, com o auxílio de algumas máquinas modernas já adquiridas, seria elevada em 20% e, portanto, a mesma produção seria alcançada com menos 20% de mão-de-obra. Todos se sentiam inseguros e a tensão aumentava causando muitos desgastes e sofrimentos antecipados.

Nesse caso, o boato apareceu para definir a situação que se desenhava visível: haveria dispensa em massa. A companhia se apressou a fazer o que deveria ter feito há muito tempo. Comunicou que estava prevista uma grande expansão, que daria lugar não só aos 20% excedentes da mão-de-obra, porém mais 30% adicionais a serem recrutados, o que representou um avanço.

Não se ignora que existem profissionais do boato. Seja nas repartições, na empresa, no colégio, mas não desconhecemos, por certo, a atuação dos profissionais ou práticos, criadores de mal-estar entre colegas de trabalho. Porque existe mesmo uma minoria que se compraz, com rara maestria, em aproveitar-se de situações de emergência, criando boatos, frustrando o grupo, cultivando animosidades, urdindo greves e aproveitando-se teatralmente da liberdade que a democracia lhes outorga, com finalidades certas, interesses próprios e inconfessáveis.

Allport expõe as condições básicas necessárias para que o fabricante de boatos prenda a atenção das pessoas, ou, para usar a expressão corrente, “para que eles corram“. Ensina: em primeiro lugar, o assunto deverá revestir-se de certa importância, tanto para aquele que transmite o boato, como para aquele que o escuta; e, segundo, os fatos reais deverão estar revestidos de certa ambiguidade. Normalmente, fatos contraditórios, complexos, voltados à intimidade das pessoas e das organizações, na forma de modelo tipo conselhos reservados entre pais e filhos” podem representar gravidade.

Essa ambiguidade, diz ainda Allport, poderá ser criada pela antinomia dos fatos, pela desconfiança em relação às notícias, por tensões emocionais que tornem o indivíduo capaz de aceitar os fatos apresentados no noticiário oficial, mas, acima de tudo, pela ausência ou precariedade de notícias exatas. Daí afirmarmos que a circulação de boatos, em muitos casos, é um atestado de deficiência nas comunicações, um sintoma da má qualidade das informações que, normalmente, não explora correntes contrárias e tomam partidos, comprometendo a sua imparcialidade.

Ocorre que essas contradições, por si só, não são suficientes  para lançar à circulação  um boato e mantê-lo em atividade por muito tempo. É preciso que o tema seja importante e, além disso, sedutor. E mais: apesar de todo aparato para evitar essas modalidades, o povo, que adora lendas e crendices, é também facilmente atraído para esse modelo de comunicação.

A grande questão, no entanto, é que fatos objetivos, relativos a guerras, catástrofes, epidemias, experiências, ciências, explorações, tornaram-se do conhecimento geral e são divulgados muito mais rapidamente do que em qualquer época pretérita; porém, se nossos horizontes se alargaram, destaca Hoyler, as áreas de ambiguidade igualmente se estenderam muito mais.

E daí valemo-nos ainda dessas formas para estruturar o nosso – agora apenas muito mais vasto – ambiente. Sem falar ainda dos nossos interesses, das necessidades emocionais e de conhecimento, não se diferenciam das de nossos antepassados no sentido de lograr explicação coerente para os ainda insondáveis mistérios que permeiam nossa existência.

Não é ocioso destacar que na vida moral e religiosa acontece muitas vezes a mesma coisa.  Na lição de Hoyler, o homem, afastado de convicções sérias e firmes quanto à sua História — seus objetivos de vida, seu passado e seu futuro, alijando-se de alicerce espiritual objetivo e externo — encontra em hipóteses mais ou menos espiritualistas, numa credulidade existencial mais ou menos sensacionalista, as distrações que lhe permitem apenas carregar o fardo de suportar sua vida (Siegfried Hoyler, O boato: comunicação patológica, scielo.br./j/ rea. Acessado em 26/03/2023).

BOATOS E FAKE NEWS

Apesar de ambos participarem da mesma realidade, boatos e fake News possuem diferenças. Geralmente, fake é definido como notícia falsa, mas é algo que não advém de um erro de apuração ou de interpretação pessoal, mas de um erro malicioso, portanto, bem direcionado e com objetivos firmes. Ou seja, um fato errado que foi apresentado na forma de notícia bem elaborada com o intuito de enganar, com propósitos políticos, econômicos ou uma combinação das duas coisas ao mesmo tempo.

Recente, fenômeno teoricamente novo, as fakenews passaram a ser utilizadas em dezembro de 2016 na campanha presidencial americana para designar blogs maliciosos que difundiam informações falsas sobre a então candidata democrata, Hillary Clinton, envolvendo aspectos de sua vida pessoal, com a intenção de desestabilizar sua candidatura e, assim, lograr vantagem, como realmente lograram com a vitória de Trump.

A mentira disseminada na comunidade é um fenômeno antigo. Então, mais uma vez, vale diferenciar que as fake news não são iguais a um boato. Primeiro porque o boato tem um requisito de proximidade, de face a face, mesmo lançado no mundo digital. De tal modo, ele é veiculado na repartição, na vizinhança, no clube, na empresa, nos conhecidos internautas. Aí todos são compartilhadores dessa informação. Afinal, quem repassa um boato é uma testemunha, mesmo quando seja utilizado na plataforma de wthazapp.

É o caso de vazamento de uma informação obtido por um parente, ou colega de trabalho, que é, por exemplo, uma autoridade que preside uma operação sigilosa, e não pode ser revelada. Esse vazamento constitui informações que devem ser ocultadas e quem a recebe de modo informal, por qualquer meio, passa a ser onerado como uma testemunha em locais de disputa e tensões. Daí a empresa, o escritório da fábrica, o colégio, a repartição pública, o ambiente digital, são locais onde os boatos florescem especialmente quando as pessoas não têm o controle de seu próprio futuro e são atraídos por alguma forma de intervenção.

Não é o que ocorre com as noticias falsas no formato das fake News, porque quem as produz são supostos jornalistas, blogueiros, publicitários, ou pessoas ligada a imprensa ou a comunicação, apresentando um texto sério, bem apurado e profissional, de modo que  as noticias falsas aparecem em sites normais, muito parecido aos que já existem, ou com uma escrita jornalística semelhante, mas sempre há algo que entrega a sua falsidade, seja no formato de meia-verdade, seja como dilatação da notícia, partindo de um fato verdadeiro mas integrando a outro que não merece nenhum crédito.

A principal diferença entre falsa informação contida em boatos e desinformação pelos fake, é que enquanto os primeiros são compartilhados acidentalmente, a desinformação é compartilhada de forma proposital, regular, intencionalmente, assim, o boato se espalha de forma espontânea, seja entre usuários da rede ou não, de noticia que pode ser verdadeira ou falsa, sendo imprecisa, quanto ao meio, quanto aos destinatários, normalmente, vinculada a impressões obtidas da vida privada, enquanto as fake são elaboradas para as redes sociais, e possuem um considerável grau de profissionalização e, por isso, podem até servir como alerta, maliciosamente um serviço publicodisfarçado.

Durante a pandemia, diversos sites informaram que a hidroxilocloroquina era medicação que curava e prevenia a covid-19, sem que houvesse nenhum estudo clinico e científico sobre o assunto, ao mesmo tempo em que anunciava que o consumo de bebidas alcoólicas era protetor da saúde e também combatia o vírus, quando o sentido era de debilitação imunológica,  além do que era preciso mais atenção aos animais domésticos que, por sua vez, transmitiam a doença (5 fakes relacionados á covid-19  in https://www.msf.org.br/noticias/5-fake-news-relacionadas-covid-19, acessado em 25/03/2023) .

Diferentemente de matérias elaboradas que se confundem até com serviços de comunicação, após a derrota de Jair Bolsonaro, com a vitória do atual governo de Luiz Inácio Lula da Silva, levando em conta o fato de que o ex-presidente não segue mais sua mulher pelas redes sociais, começaram a surgir diversos textos, na verdade boatos sobre uma suposta separação no casamento com a primeira dama Michelle Bolsonaro, partido de amigos e parentes que conhecem pessoalmente o casal, mas a noticia já foi retratada pela própria esposa, que desmentiu o anunciado rompimento.

Vejamos um exemplo grave: dois dias após o assassinato da vereadora Marielle Franco, no dia 16 de março de 2018, por volta das 9,11hs, o advogado Paulo Nader postou um comentário no Facebook favorável à parlamentar assassinada, lamentando sua morte injusta,  enaltecendo seu grande valor como  mulher guerreira. Logo depois, as 11 hs, um comentário da desembargadora Maria Castro Neves rebate o post: “a questão é que a tal Marielle não era apenas uma lutadora, estava engajada com bandidos. Foi eleita pelo Comando Vermelho e descumpriu compromissos”. E isso “viralizou” nas redes sociais.

As 21,05 hs a jornalista Mônica Bergamo, da Folha de SP, de posse do comentário da magistrada, publicou matéria em sua coluna com a seguinte chamada: “Desembargadora diz que Marielle  estava engajada com bandidos e é cadáver comum”, produzindo outra grande reprcussão. A matéria despertou descontentamentos, originou processos judiciais e mais de 16 mil emails denunciaram fakeNews, quando, nove dias depois, o jornal se retratou admitindo  uma série de equívocos, em matéria assinada pelo ombudsman Paula Cesarino Costa.

É o modelo clássico de como os fabricantes de mentiras transformam um boato em fake news, no estilo do truque conhecido no  jargão da imprensa como “caça cliques”, por sinal, repudiado pelo próprio jornal paulistano, se atentarmos  para a leitura de seu Manual de Redação voltado para seus jornalistas.

Se a colunista tivesse feito uma investigação mínima, sobre a fonte em que se baseava, uma pessoa polêmica e autoridade preconceituosa, com problemas em sua carreira de magistrada e, além disso, tivesse checado dados, teria visto que a vereadora não foi  eleita pela zona de atuação do Comando Vermelho, bastando conferir os resultados fornecidos pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, disponibilizados pela internet, quando a maior parte de seus votos não vieram das favelas cariocas.

Finalmente, em linhas gerais, definimos os boatos como noticias que circulam entre amigos, parentes, colegas de trabalho, seja na repartição, no colégio, na empresa, em qualquer lugar, seja face a face, seja remoto, nas redes sociais, mas sempre algo parecido com um vazamento, fato que ainda não é oficial, ou não é noticia dos grandes jornais, sobre assuntos de interesses comuns, podendo ser apresentado como um formato de serviço, no sentido de informar quem não está sintonizado com os problemas da organização, dos colegas, da política, ou da vizinhança, enfim, é uma forma de comunicação antiga, próxima a quem divulga e distante quanto a autoria.

Durval Aires Filho

Durval Aires Filho é Desembargador do Tribunal de Justiça do Ceará, professor universitário e mestre em Políticas Públicas. É membro da Academia Cearense de Letras, tendo publicado os seguintes livros: “As 10 faces do mandado de segurança“ (Brasília Jurídica) e “Direito público em seis tempos. Autores relevantes e atuais” (Fundação Boitreaux). Antes da pandemia foi vencedor do Prêmio Nacional de Literatura para Magistrados, com a ficção “Naus Frágeis”.