Chovera o dia todo.
Na verdade, a chuva calma, quase contínua, com curtos intervalos de neblina, iniciada às poucas horas da madrugada, transpusera os umbrais da preguiçosa manhã, não se intimidara ante as anêmicas ameaças do sol – então encoberto e dominado por denso véu plúmbeo –, enveredara pela pasmaceira da tarde, só se dando por vencida e satisfeita talvez, por puro cansaço – creio eu –, quando a boquinha da noite expelira, repetidas vezes, ao compasso de uma sôfrega respiração, a cinzenta e cálida baforada própria de quem sofre na pele o frio gélido, arrepiante e inamistoso que, parecendo um arsenal de minúsculas e invisíveis armas pontiagudas a penetrar pelo sistema poroso da derme, estimula a natural reação em contra-ataques inexpressivos de calor produzido no âmago do ser.
A cidade, esta senhora que já perdera a cor de ouro das múltiplas longas tranças e experimentara mais um dia de total desprezo do álgido e estelar esposo, parecia, toda ela, ter saído de um longo e interminável banho sem, contudo, encontrar uma toalha sequer com que pudesse secar o insensível e quase impermeável invólucro de cimento e asfalto e, assim, amenizar os efeitos do clima nas suas entranhas, onde os seres vivos buscavam algum tipo de acomodação que lhes proporcionasse um mínimo de conforto.
A bem da verdade, esses momentos – cruciais para muitos –, eu os enfrento de diferente forma, ou seja, com o jeito de quem nasceu e cresceu ao pé da serra, que, através de banhos infindos, de emaranhar os cabelos, avermelhar os olhos, arroxear os lábios e engelhar as palmas das mãos e os solados dos pés, jogando bola em pisos lamacentos, chutando as poças formadas nas longas calçadas, suportando no cocuruto a forte queda d’água das bocas de jacaré dos altos prédios e laterais de igrejas ou saltando perigosamente nas velozes e profundas correntezas de rios em enchentes barulhentas e barrentas, aprendeu a preferir o frio ao calor, a sempre prescindir de agasalhos – blazers, jaquetas, casacos ou cachecóis – e cobertores – lençóis ou mantas –, em cuja memória epidérmica só há registro de duas ocorrências distintas, nas quais me rendi aos efeitos do clima.
Uma delas, ainda adolescente, vontadoso lateral esquerdo do brioso Putiú Atlético Clube, sob o comando firme do feirante Ornilo e o patrocínio generoso do “padim” Ribamar, após uma renhida batalha pebolística contra o bom time dos donos da casa, com empate em um gol – o deles em pênalti “inventado” e cobrado ene vezes até ser convertido, para, ato contínuo, a peleja ser encerrada, já quase sob o brilho das estrelas que logo tremeluziriam em céu anilado de prussiano azul –, no campo de piso avermelhado da Aratuba, descendo a serra em plena madrugada de uma segunda-feira, mal acomodado e sem a devida proteção – vestido apenas com camisa de mangas curtas e bermuda –, recostado numa das poucas saliências da carga, lá no alto e na parte de trás de uma carrada de frutas e verduras envolvidas em lona encerado, na carroçaria de caminhão de transporte desses produtos para comercialização no Ceasa da Pajuçara; nessa ocasião, até a alma enregelou-se, e, ao pisar em solo firme, invadiu-me a acabrunhante – e temporária! – sensação de que não conseguiria mais andar.
A outra, nos estertores da década de 1980, em acolhedora e confortável (e cara!) suíte de hotel, no décimo oitavo andar de prédio com frente para rua declivosa e perpendicular à avenida Paulista, por trás do edifício-sede do Banco Central em São Paulo, em madrugada chuvosa, com temperatura despencando para menos de dez graus e sensação térmica comparável com a dos gelados campos siberianos, apesar de – pelo que constava de pequeno painel de minúsculas luzes vermelhas e azuis – o sistema de calefação estar em pleno funcionamento, meti-me então num moletom cinza que enfiara na bagagem por insistência da minha filha mais velha (ainda bem jovem) e desapareci, por inteiro, sob a maciez protetora e aconchegante de um edredom, com a sensação de que ali dormiria o sono derradeiro, para todo o sempre, amém. Ao amanhecer, com a chuva tendo dado uma trégua, gerando em mim a expectativa de que “depois da tempestade, vem a bonança”, avistei, do janelão da sacada da suíte, um voluptuoso rio de águas acinzentadas, desbordando do leito da rua e avançando furioso sobre as calçadas, fazendo marola e arrastando o que pela frente encontrava. Já no banco, ao referir-me à cor cinza das águas do rio-rua, um colega esclareceu: Dada a poluição do ar, aqui a chuva já desce suja das nuvens. E eu pensei comigo mesmo: Ações do homem em desarmonia com a Natureza. E ele nada mais disse porque nada mais cabia dizer.
Pois bem.
Eram umas sete da noite de quinta, começo do mês de abril de 2019, e, após a fase de triagem, educadores físicos do Lourenço Filho se dedicavam ao processo de formação das seleções – nas modalidades de basquetebol masculino, futsal masculino (nas faixas etárias sub-12 e sub-17) e feminino e voleibol feminino – que, no curso do ano letivo recém iniciado, representariam o colégio em várias competições intercolegiais. E, como os meus netos dessas atividades participavam, os dois meninos no futsal e as duas meninas no vôlei, eu nesses eventos também atuava, naquilo que me era dado partilhar, embora sem me envolver tanto quanto outros atores e atrizes em idênticos papéis. Naquela noite, especificamente, isolei-me no último lance da arquibancada de madeira mais ao fundo do ginásio coberto, na lateral da quadra maior (a Domingos Olímpio, ainda com bom fluxo de veículos, às minhas costas), e entreguei-me, de corpo e alma, à continuação da leitura de outro best-seller do pensador israelense Yuval Noah Harari, Homo Deus: uma breve história do amanhã, de cuja página 179 propositalmente ora recolho este excerto: Na verdade, nenhum animal social jamais é guiado pelos interesses de toda a espécie a qual pertence”.
De repente, sentou-se ao meu lado um garoto de uns doze anos, não mais que isso, franzino, moreno, cabelo crespo, com olhar, jeito, roupas e chinelos que denunciavam o sofrimento e a desesperança de quem não tem onde morar, e, timidamente, me fez esta indagação:
– O senhor é o seu… seu Chico… Chico Lu?
Dominada a surpresa, respondi-lhe:
– Sim, sou eu. Por quê?
– É que aquela senhora… – Ele estirou o braço direito e, com o indicador, apontou para o outro lado da quadra menor, na direção da estreita porta de acesso ao ginásio, para quem nele adentra pela Barão do Rio Branco, e prosseguiu. – …. vestida de preto e com grande bolsa dependurada no braço… o senhor está vendo?
– Sim, estou…
– Ela me mandou entregar este envelope ao senhor… – E, passando às minhas mãos um envelope pardo, de tamanho A4, devidamente lacrado, com conteúdo que aparentava ser de muitas folhas de papel e, na parte frontal, em letras grandes, caligráficas, a singela e clara indicação do destinatário “Ao senhor Xykolu”, o garoto completou. – … dizendo que o senhor só abrisse quando chegasse em casa.
Percebi, nesse momento, que a mulher desaparecera, e, dada a distância, não consegui captar qualquer imagem dela com a nitidez que ora me permitisse recuperar algum traço específico, traçar-lhe um perfil. Recebi a encomenda, dirigindo-me assim ao estafeta mirim:
– Pronto. Confirmo o recebimento… Qual é mesmo o seu nome?
– É Tiago, senhor.
– Pois bem, Tiago. Serviço concluído.
– Só que, seu Chico Lu, eu estou com um problema que o senhor podia…
– Me diga, jovem, qual é o seu problema…
– É que ela, a mulher de preto, me deu uma cédula de cem reais… e, se eu sair por aí com ela, vão achar que roubei de alguém…
– Então, Tiago, você quer que eu a troque pra você, não é isso?
– É, sim, senhor. Aí eu distribuo as cédulas pelos bolsos da bermuda, pra ninguém desconfiar, né?
Eu costumava andar com dinheiro trocado, pois isso facilitava o pagamento das merendas dos meus netos. Peguei a carteira de cédulas, dela retirei três de vinte, três de dez e duas de cinco, e as repassei ao Tiago que, de pronto, me entregou a de cem, agradeceu-me, desejou-me um “boa noite” e, apressadamente, deixou o ginásio. Enquanto isso, para conter a curiosidade, acomodei o envelope no assento da arquibancada, ali bem perto de mim, sobre ele pus os meus apetrechos – carteira de cédulas, documentos e chaves do carro e os celulares dos netos – e retomei o que fazia antes, ou seja, a leitura do Homo Deus.
Já em casa, devidamente recolhido à minha sóbria ilha de criação, dediquei-me ao desvelamento do mistério que naquele envelope pardo se encapsulara. Revelou-se, então, um calhamaço de papéis, cópias xerográficas de documentos vários, cuja sequenciada numeração à mão, na parte superior e à direita de cada folha, frente e verso, indicava tratar-se de processo, o que logo se confirmou por outros aspectos logo verificados. Encimava o conjunto de exatas cento e oitenta e seis páginas um “despacho de encaminhamento”, digitado e impresso em meia folha de papel A4, sem assinatura, e lavrado nos seguintes termos:
“Senhor Xykolu.
Sou sua leitora assídua.
Leio todas as suas postagens no Facebook.
Senti-me estimulada a enviar-lhe cópia integral do meu processo de aposentadoria, com o pedido de que lhe seja dada uma narrativa, ao seu talante.
Peço, também: a) por ser de bom alvitre, que evite citar os nomes das pessoas que circunstancialmente participaram deste enredo; b) tão logo se esgote a razão da existência destes papéis, que os incinere.
Publique-a somente após junho de 2021, época em que terei liquidado o ônus financeiro que me impuseram.
Convicta estou de que o senhor comigo concordará em pelo menos dois aspectos – a burocracia injustificável e danosa; e nem tudo que aparenta ser legal assegura a plena observância da Justiça.
Acho que isso lhe renderá uma boa história.
Boa sorte e um abraço. YRiS.”
Claro para mim restou que tal senhora escolhera esconder a sua identidade atrás de uma sigla, como se isso servisse de biombo. Certamente, tem um nome iniciado por “Y” – Yolanda, Yasmin, quem sabe –, ou até mesmo por “I”, com sobrenomes em “Ri” – Ribeiro, talvez – e “S”, com um leque de opções bem mais amplo – Santos, Saraiva, Serafim, Silva, Sousa, Sussekind… Convencido de que não adiantaria qualquer tentativa de decifração da “YRiS”, decidi: pra mim, ela será simplesmente a “dona Y.”, e ponto final.