Ética e Democracia: O público e o privado, por Alípio Casali (PUC-SP)

RESUMO

O ideal da prática ética, na Modernidade, tem sido um projeto atravessado por conflitos, no limite, insolúveis. Tais conflitos estão relacionados, por hipótese, ao modo de constituição da economia/sociedade do mercado. As formulações divergentes de filósofos, economistas, sociólogos, psicanalistas, ao longo dos últimos quatro séculos, a esse respeito, são evidências eloquentes da permanência insolúvel desse conflito.

Um marco inicial do tema pode ser a afirmação do “sujeito selvagem” (Homo homini lupus) de Thomas Hobbes, que recebeu contraposição de J.J.Rousseau com seu conceito de “bom selvagem”. Immanuel Kant, a seguir, buscou solucionar a tensão entre essas duas posições pela colocação do projeto do Iluminismo/Esclarecimento, apostando na possibilidade de exercício da racionalidade pelo sujeito ético. Entretanto, ao longo de todo o século XVIII, economistas ingleses de distintos matizes se debateram buscando encontrar uma justificativa fundamental consensual que combinasse a possibilidade de equilíbrio entre o “egoísmo” da ação originária natural do homem e uma moral de convivência adequada na vida social. Esse esforço culminou em Adam Smith com sua clássica solução metafísica da “mão invisível do mercado”. Tal solução foi criticada por Karl Marx, o qual partia de premissa oposta: de que a posição originária do homem não é uma posição individual e sim sua condição social, a partir da qual os homens realizam a produção social da sua existência, a qual por sua vez, no caso da economia de mercado, se faz na condição predominante de alienação, tendo possibilidade de encontrar solução apenas numa futura sociedade sem classes e sem Estado. Max Weber, diferentemente, apontou para a necessária distinção e separação dos campos da vida privada e da vida pública, como condição para a realização da economia capitalista, e que isso se tornaria possível por meio de um Estado racional. As possibilidades de realização desse projeto de racionalidade foram questionadas a seguir por Sigmund Freud, que postulou a condição fundamental do sujeito como um ser irracionalmente e imprevisivelmente desejante, do que resulta o inevitável e insolúvel mal-estar do próprio sujeito e da Civilização (Cultura) da qual o sujeito depende para sobreviver. Não por acaso Michel Foucault insistiu, mais contemporaneamente, na descrição dos dispositivos pelos quais esse sujeito moderno aparece como um sujeito assujeitado às normas disciplinares da política, a despeito de sua potência e sua liberdade de apropriar-se e inventar-se como sujeito.

Com efeito, a atual condição de ordenamento da sociedade do mercado parece não encontrar chance de perenidade fora de dispositivos institucionais de disciplinamento das atividades corporativas, e isso se mostra pela profusão de dispositivos constitucionais, legais, normativos, regulatórios, de compliance e educativos, cuja expressão sintética mais frequente tem sido a dos Códigos de Ética profissionais, institucionais, organizacionais, empresariais.

Recolhidas essas lições da história, o sujeito, agora auto-definido como trabalhador e cidadão, nas atuais circunstâncias contemporâneas tem se mostrado como um “sujeito atormentado”. De um lado, ele é convocado pela consciência coletiva da humanidade para reposicionar-se como sujeito responsável diante do futuro (essa consciência é incontornável e inevitável, à vista de tantas informações e conhecimentos disponíveis, que apontam para a insustentabilidade do modo de funcionamento da economia de mercado até aqui); por outro lado, esse sujeito contemporâneo é tentado pelo desejo de fundar-se como um sujeito soberano, que presta contas apenas a si mesmo, o que significaria, em certas circunstâncias, tornar-se irresponsável ambientalmente e socialmente, enfiado em seu projeto individual hedonista e narcisista. Esse sujeito é e será atormentado enquanto sentir-se dilacerado entre essas duas demandas radicais antagônicas: a do seu desejo narcísico e a da sua consciência social.

Diante dessa dilaceração, e buscando superá-la, a ética pessoal, social e empresarial exige um investimento na educação corporativa, na qual se cultive o projeto de formação de um sujeitotrabalhador-cidadão apto a investir na sua subjetividade (mundo vivido) de modo compatível com as demandas simultâneas da racionalidade sistêmica dos empreendimentos produtivos dos quais participa, de modo a fundar, assim, um sujeito sustentável, o qual, na plenitude do seu exercício, seria justamente o sujeito ético, privado e público, que a cultura contemporânea reclama para que ela própria seja sustentável. Nesse sentido, a plenitude democrática é uma condição para a plenitude ética.

Do ponto de vista prático, no cotidiano das corporações, especialmente das empresas estatais (comprometidas inerentemente com o interesse público, isto é, com o Direito), a construção desse sujeito implica também em adoção de práticas de gestão referidas por um Código de Ética suficientemente consistente e legítimo, ademais da instituição de procedimentos preestabelecidos nos processos de tomada de decisão, mediante dispositivos de compliance e accountability eficientes, eficazes e efetivos, que previnam os sujeitos de perderem-se em conflitos de interesse.

Estes últimos, por serem normativos, convocam a consciência (moral) obediente e têm um efeito mais dependente de sistemas de controle; o Código de Ética convoca a consciência (ética) crítica autônoma, inventiva e responsável e por isso pode ter um efeito educativo mais sustentável. Alinhado com essa perspectiva, um projeto de educação corporativa que supere a abordagem reduzida a treinamentos e capacitações pontuais funcionais mostra-se pertinente e oportuno.

São Paulo, maio 2016

Alípio Casali Filósofo. Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (1989), na qual é Professor Titular do Departamento de Fundamentos da Educação, docente e pesquisador da PósGraduação em Educação. Pós-Doutor pela Universidade de Paris (1995). Foi membro do Conselho Municipal de Educação de São Paulo. Autor de livros e artigos na área da educação, especialmente sobre ética nas organizações. Foi Vice-Reitor de Planejamento e Administração da PUC-SP. Foi Secretário Municipal dos Negócios Extraordinários da Cidade de São Paulo. Foi membro do Conselho de Administração de empresas públicas da Cidade de São Paulo (Anhembi Turismo e Eventos, Teatro Municipal, Processamento de Dados do Município). Conferencista em Seminários Internacionais, em diversos países. Atuou como consultor do Banco Mundial e do PNUD. Consultor na área de Sustentabilidade e Responsabilidade Social de Empresas, especificamente em torno a projetos de elaboração de Código de Ética Empresarial e de Gestão da Ética. Curriculum Vitae acadêmico na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/7969272872511400

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