Escolhas

Na tradição cartesiana o cogito: “Penso, logo existo” fala de uma visão de homem onde a categoria da existência está atrelada a categoria do pensamento. Encontramos nessa formulação o fundamento e a certeza da subjetividade que é o processo pelo qual algo se torna constitutivo e pertencente ao indivíduo de modo singular: é o processo básico que possibilita a construção do psiquismo.

No campo da psicanálise, podemos falar de decisão em um tempo ainda mais primitivo e mítico ao sujeito vivente que há de se aceder ao universo simbólico: Freud refere-se à afirmação primordial que se trata de uma decisão, de uma escolha, de um primeiro julgamento de atribuição no momento em que o sujeito reconhece que um primeiro significado lhe pertence e que ele deve incorporá-lo a seu ser.

Para ele, a subjetividade é constituída pelo consciente e pelo inconsciente, e se atentar à subjetividade é estar em acordo de que a “vida subjetiva” não é o reino do absurdo, do obscuro, da impossibilidade do saber, e sim um objeto de possível compreensão racional. É através da nossa subjetividade que construímos um espaço relacional, ou seja, nos relacionamos com o outro onde este relacionamento nos insere dentro da esfera de representação social em que cada sujeito ocupa seu papel de agente dentro da sociedade.

Escolher é estar diante de uma decisão que incorpora não somente perder algo, mas ao contrário, ser capaz de representar por meio da escolha algo que vai além do modismo, da hierarquia, do engodo e da sublimação transferencial, da permanência de crenças do nosso próprio saber, enquanto nos limita a não olhar as coisas como elas são, mas sim o que está por trás, com profundidade.

No exercício da democracia temos a grande chance de exercer a nossa subjetividade pela decisão: a palavra democracia é formada por dois vocábulos gregos, que juntos implicam uma concepção singular de relações entre governados e governantes: “demos” significa povo ou muitos, enquanto “kracia” quer dizer governo ou autoridade. Democracia é um tipo de organização social no qual o controle político é teoricamente exercido pelo povo, pelas nossas escolhas nas urnas, estas que deveriam ser a expressão daquilo que acreditamos ser o melhor para o nosso país, e não sujeito a modismos temporários: deveríamos ser capazes de escolher por nós mesmos, e não por indução familiar, escolar, religiosa, da classe social onde pertencemos.

Trata-se de uma decisão extremamente importante, direitos estes que englobam a permanência à vida, à igualdade perante a lei e a liberdade de expressão: economia, sociedade, cultura, trabalho, educação e coletivos como o direito ao desenvolvimento e aos direitos humanos.

Votar significa ter uma ação diante também de nossa subjetividade, sendo uma atitude muito mais profunda do que uma “briga de egos”.

O ego se desenvolve a partir da diferenciação da capacidade psíquica em contato com a realidade exterior, e enquanto “brigamos” para defender uma escolha política “individual”, perdemos a oportunidade de estabelecermos um debate político de qualidade. Enquanto só apontamos o erro do outro, perdemos um potencial de fala sobre o próprio pensamento diante da escolha política e do que realmente deve ser considerado e pensado diante da escolha.

Se prestássemos mais atenção nisto, talvez não perderíamos nosso tempo atacando o outro, brigando para defender o nosso: quem será que precisa de defesa?

No livro do historiador e filósofo Yuval Harari, “Sapiens, uma breve história da humanidade”, ele faz uma análise crítica de como chegamos até aqui, refletindo sobre a evolução da nossa espécie ao longo de 300 mil anos no qual ele nos faz um alerta sobre os riscos do futuro. De certo modo, ele também fala do quanto as narrativas falharam ao longo do tempo e o quanto ele ainda acredita na humanidade: que livro intenso, necessário.

Diante de nossas escolhas, penso ser prudente nos perguntarmos: o que pretendo com a minha escolha? Existe eco do que e de quem em quem escolho votar? Em que momento da evolução nos encontramos quando escolhemos este ou aquele candidato? Onde nos perdemos?

Neste processo, a única coisa determinantemente humana é justamente a formulação que fazemos após a perda: o arrependimento. De certa forma, todos vamos nos encontrar nas urnas no próximo domingo.

Este texto foi escrito ao som da música: “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, cantado por Gal Costa.

Claudia Zogheib é responsável pelas páginas Cinema e Arte no Divã, Auguri Humanamente. Psicóloga Clínica, Psicanalista, especialista pela USP- Departamento de Psicologia.

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Claudia Zogheib

Claudia Zogheib é Psicanalista, Psicóloga Clínica, especialista pela USP- Departamento de Psicologia. responsável pelas páginas Cinema e Arte no Divã, Auguri Humanamente www.claudiazogheib.com.br / www.augurihumanamente.com.br

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