Mário Gomes não foi um poeta dos livros, mas das praças: pertencentes ao povo como o céu ao condor; a pessoa dele é que carregava consigo um estranho significado, e talvez apenas – numa primeira impressão – em sentido negativo: ele seria a personificação da decadência da poesia, no seu nem tão novo e nem tão desconhecido intento de mudar a vida, de transformar a prosa tediosa dos ofícios em vida inquantificável, inequivalente, singular, ainda que pela porta nem tão doce da loucura; alguém que esteve a olhos vistos nos comunicando o fracasso desta sociedade e de suas correspondentes formas artísticas, e não nos demos conta. Talvez não possamos exigir dele, enquanto poeta, nada mais do que isso.
Renato Pessoa é um poeta dos livros, seus versos é que são louváveis, mas quem sabe também apenas – numa primeira impressão da sua juventude – em um sentido negativo: eles são a expressão artística dos impasses atuais do sujeito moderno, seu niilismo entranhado; alguns lampejos de vida em seus versos bem que mereceriam algum desvio. Há um poema de Drummond que começa com “Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade” e termina com “Desconfio que escrevi um poema”. Em Drummond, há uma tensão entre os impasses da arte e os impasses do sujeito moderno; em Renato Pessoa, no seu primeiro livro intitulado “O corpo arcaico” (2011), há uma sobrevida do artístico por sobre os escombros da vida, algo que se poderia chamar de “versos da vida mutilada”, e isso se expressa incisivamente quando nos diz, já nos versos de abertura: “Ouço rumores de que vida não há mais – nada mais ouço agora”.
Se algo houver a ser dito quanto à forma no interior da própria forma, digamos que “O poema é um dilema/entre viver ou fazê-lo/entre matá-lo ou morrer”. Mas esse é um antigo problema que não se resolve no campo separado da arte, do artístico por si mesmo, mas social – ainda que seja preciso nutrir-se dela como aqueles míticos irmãos romanos nutriram-se do seio da loba, ou mesmo como em nossas terras nutriram-se cangaceiros e retirantes de rapadura e charque em sua peregrinação.
O que se chama de arte, em todo caso, pode ser algo como uma mãe grávida de sonhos, prenhe de um porvir ainda desconhecido e incerto. E acredito, enfim, não ser inoportuno me confessar alterando algumas linhas de um de seus inconcebíveis poemas:
Amei-a mais do que a todos os homens.
Briguei com Deus, traí o Diabo, neguei a ambos.
Escrevi poemas e bilhetes de amor,
ode, elegia e até carta suicida.
Conspirei insurreições e severos insultos à arte.
Dancei comigo mesmo numa noite vazia e sem cor.
Sentei a sós numa praça.
Confesso que bebi, e quase não resignei caminhos tortos.
Quando dei por mim já era alta madrugada…
havia perdido o último bonde.
– Deus meu, nem existem mais bondes…
Ainda assim, imaginei encontrá-la
num desses desencontros
conscienciosamente perseguidos ao acaso.
Amei-a nos tombos.
E tudo não passou de uma enorme tolice!
Mirava conjecturas.
Mas quais amores
são mais intensos senão estes!
(O corpo arcaico; Poema para Anara inconcebível; Renato Pessoa).