Entre Baleias e Moscas

Tem uma coisa martelando na minha cabeça, é como uma angústia, só que física. Não sei se aconteceu na mesma hora para você, também isso não mais importa no ponto em que estamos. Entretanto, acho que faria toda diferença para nossa pesquisa se pudéssemos deduzir algo sobre o desaparecimento dele, se se trata de um evento de ordem material (se deu férias, foi sequestrado, morreu?!) ou se foi algo que mudou apenas para nós dois (mentalmente mesmo, digo). Por isso, precisamos unir provas e dados que comprovem o sumiço dele. Conto com você.

Queria acreditar que o homem, o ser magnânimo, criado a imagem e semelhança de Deus (ou dos reptilianos), é a única espécie viva que possui alma e que transcende. Queria mesmo, mas o tempo de vida das moscas me perturba sobremaneira. Pior! Você já viu algum cadáver de mosca? Pois é! Isso não te inquieta? Qual a razão da existência das moscas? Sabe responder essa? Sapos comem moscas, daí a função da mosca (que escroto pensar assim!). 

Imagine que agora mesmo um grupo de jovens está num carro a caminho de uma praia próxima à sua residência, na cabeça deles, aquela viagem é a retribuição merecida por uma rotina cansativa de estudos árduos (diários, com apenas uma a duas folgas semanais, a depender do seu reconhecimento e sucesso social), 365 dias num ano, e somente por 1 mês você estará livre para viver como deseja; Do outro lado do mundo, uma senhora pega um transporte público lotado para chegar ao trabalho, levando exatas 14 horas para retornar à sua casa no final do dia. Você, por exemplo, deve estar muito bem posicionado sobre sua cama, ou em qualquer outro acostamento confortável, lendo a minha carta e pensando: por que fui dar atenção a essa menina? 

Obviamente cada espécie conhece intuitivamente o suficiente para conseguir sobreviver na natureza. Nós seres humanos, como principal atributo, temos o nosso raciocínio (sem isso, certamente, seriamos devorados por animais mais fortes e mais velozes ocasionalmente). Lá em cima, um grupo de estudantes extraterrestres observa, para o seu trabalho da faculdade, os três corpus citados: os jovens em viagem de carro para a praia; a mulher que dedica mais da metade de seu dia à labuta e você, muito bem acomodado. Sobre o experimento in vitro eles não concluem nada, o que desencadeia, na ação e reação cósmica, um demorado sermão de seu orientador, famoso pela tese de doutorado que comprova a relação estatística entre as chuvas de fevereiro e a diminuição de nascidos do signo de escorpião naquele mesmo ano.

Maldita narrativa pós-moderna! Não nos deixa pensar fora da caixa. Vou tentar de novo:

 O tempo de vida da mosca, que vida desgraçada, é apenas 28 dias. Seu ciclo é esse, ela tem que correr atrás. Cuidar de crescer e procriar, a morte tá ali. Agora atente para o fato de que, quando tentamos matar uma frágil mosquinha com as nossas próprias mãos, somos frustrados, pois elas são muito, mais muito mais rápidas que a gente.  Ou nós é que somos lentos? Lancei à problemática. Einstein (que ninguém aqui tem cacife o suficiente para contestar) comprovou que o tempo é relativo inclusive entre as pessoas, o que podemos então dizer sobre as diferentes percepções do tempo entre espécies? Imagine que são 28 dias pra gente, não são, na verdade, uma vida cansativa e tediosa para as moscas que nos infernizam os ouvidos? E se, na melhor das hipóteses, com muita sorte, a espécie humana vive até os 100 anos, isso seria motivo de chacota para sermos vistos com desdém pelas baleias do Ártico? A graça realmente é viver muito? É superior a espécie que vive mais? O objetivo do jogo é viver mais? Será? Porque não é o que parece.

 Visto que nossas vidas são moldadas com a finalidade de preservar um status quo, que antepõe à Abstração do Valor em detrimento da vida humana, preencher o nosso tempo com formas de acumular dinheiro se tornou o nosso devir natural. Estudar pra ter dinheiro, trabalhar pra ter dinheiro, ter dinheiro pra ter dinheiro, dinheiro para ter tempo, tempo para curtir a vida, vida de qualidade, que precisa de dinheiro, aí a gente estuda pra ter dinheiro, trabalha pra ter dinheiro etc etc. A nossa geração, pelo que pude perceber, nunca ganhará dinheiro o suficiente para comprar o seu tempo de vida de volta. Parecemos aqueles cachorros engraçados, que gostamos de assistir perseguindo o próprio rabo. A gente fica abismado, como também devem ficar os extraterrestres vendo uma parede de areia separar o desperdício de alimentos da fome.   Seres humanos: No que pensam? O que comem? Onde habitam? 

Se o tempo de vida for o critério, as baleias do Ártico já saíram vitoriosas na competição evolutiva. Estamos anos luz atrasados das baleias! Sem dúvidas os deuses tem forma de baleia. Elas conseguiram chegar lá sem guerras, sem neuroses, sem desequilibrar o ecossistema, sem prisão. Elas evoluíram ao ponto de simplesmente existir. Mas pra quê viver tanto, não é mesmo? As moscas viraram o jogo! Contra os humanos e contra as baleias. Elas venceram! Suplantaram a Crise Estrutural do Tempo, fecharam o ciclo da vida sem crises existenciais e ainda buzinam isso nos nossos ouvidos sempre que têm oportunidade. Enquanto isso, estamos aqui, vivendo rotinas maquinais devoradoras de tempo para, por fim, achar o próprio rabo e tentar gozar de um pouco de tempo livre no final. E o tempo é relativo, veja que ironia!

 

Raquel Catunda Pereira

Raquel Catunda Pereira é romancista, dramaturga e contista cearense premiada com as obras "Historia entre Mundos", Prêmio Rachel de Queiroz; "Espetáculo de Você", Concurso Jovens Dramaturgos" e "A Equilibrista", Coletânea de Contos Ideal Clube. A escritora é também Mestre em Literatura Comparada pela UFC e exerce atividades como educadora em escolas de Fortaleza.