Entender racionalmente irracionalidades

“Fins moralistas justificam meios violentos”. Jonathan Haidt.

“Quando os missionários chegaram à África, eles tinham a Bíblia e nós tínhamos a terra. Disseram-nos: “oremos”. Nós fechamos os olhos para orar. Quando os abrimos, nós tínhamos a Bíblia e eles tinham a nossa terra”. Desmond Tutu.

 

Palavras não são simplesmente palavras. Transformam-se em ações, em comportamentos. Verbos fazem-se carnes. Donde se conclui que uma indústria de comunicação social canalha é capaz de forjar espectadores e atores sociais canalhas. Essa é a base estratégica sobre a qual está alicerçada tanto a rede fascista de produção de palavras-e-imagens com suas dissonâncias cognitivas (“são as ongs que incendeiam a floresta amazônica”, “urnas eletrônicas estão fraudadas”, “o PT desenvolveu mamadeira de piroca etc.”), como a imprensa corporativa empresarial, representante do grande Capital, para a qual mais importante do que analisar o conteúdo da entrevista concedida por Rosângela Silva (Janja) ao programa Fantástico, é especular sobre “o preço da blusa que ela estava usando naquele evento” e vendê-la como notícia para ser o assunto dominante nas conversas do dia seguinte.

Este é o eixo central da Guerra Híbrida, uma guerra subliminar. Uma guerra feita de palavras, imagens, inversões da realidade, volatilidade da informação, emotividade, provocação de ressentimentos escondidos nos porões dos indivíduos, preconceitos de classe, raça, cor, gênero como também das convicções difundidas pelos sistemas religiosos, enraizadas no cerne de cada alma humana. Neste formato de guerra, os processos bélicos são tão mais eficazes quanto mais imperceptíveis.

As consequências de uma Guerra Híbrida não são necessariamente corpos estirados no chão a céu aberto, acertados pelos projéteis e filmados pela televisão; mas são as vítimas invisíveis da desestruturação econômica e política causada pelos senhores da guerra, expressa em desemprego, fome, desnutrição, precarização do trabalho e das redes de proteção social das famílias, da violência estrutural dos aparelhos de polícia e de justiça contra a população em geral, do açodamento de polarizações internas que alimentam a violência entre irmãos de uma mesma nação. Diante de 180 milhões de crianças passando fome no mundo, os Mercados são considerados sagrados intocáveis.

A Guerra Híbrida funda-se no conceito de Fé. Como se sabe, a Fé move montanhas. A Fé baseia-se na crença sem a necessária exigência de demonstração de provas, funda-se em dogmas, em convicções e hierarquias. Há quem acredite que no início da criação do mundo a serpente falava com os primeiros humanos; que o trovão ocorria porque Zeus estava irritado; que o mundo foi criado há pouco mais de cinco mil anos; que a mulher foi feita a partir da costela do varão; que há figuras humanas com asas; que as faltas humanas (pecados) se lavam no sangue fazendo sacrifício de animais ou de humanos; que mulheres não podem entrar num templo com os braços à vista; que uma safra ruim da colheita agrícola devia-se a existência de bruxas (mulheres) e era preciso queimá-las (Copérnico adiou a publicação de sua descoberta sobre a realidade do sistema solar justamente por medo de perseguições religiosas, Giordano Bruno não teve a mesma sorte).

Portanto, a Fé não tem limites, dispensa a racionalidade. Funda-se numa visão mágica da vida. Sem dúvida, preencher o vazio explicativo com um mito gera mais sentimento de segurança do que um buraco negro no desconhecido. Na falta de ciência, tem-se a crença. E sentir-se filhos de Deus torna as pessoas poderosas e seguras diante do caos planetário em que vivem. Diante da existência insegura, agarram-se a qualquer esperança.

A Fé foi uma ferramenta estratégica das guerras. Os nazistas levavam em suas bandeiras nos seus ataques genocidas o lema “Deus está conosco”. O Taliban permite-se fazer qualquer coisa em nome da Fé. O lema “Deus, Pátria, Família” está na boca dos neofascistas atuais como Trump, Erdogan, Meloni e Bolsonaro. Israel até hoje acredita-se como sendo “o povo eleito de Deus”, com direito a exercer a justiça divina em cima de outros povos. Portanto, a Guerra Híbrida desencadeada no tempo presente fundamenta-se na tática de manipulação da Fé para fins políticos: adotar crenças necessárias para justificar e confirmar os quereres, reivindicar a fidelidade de Deus às ações humanas. Em nome de Jesus, padres e pastores recomendaram aos fiéis, em seus atos litúrgicos, transmitindo pelas mídias sociais e televisões confessionais, votar em Bolsonaro em 2022. Usam-se as crenças para justificar o injustificável.

Não há barbárie que não se proteja com argumentos de “elevada nobreza”. Formulações que permitem liberar as rédeas do ódio, aquele sentimento de odiar com boas razões. Afinal, imoral é o outro. E assim desenvolvem-se processos de hipocrisia na defesa de privilégios antigos e novos. Clamar por ditadura para salvar a democracia. Em nome da moral e dos costumes, o ódio impera. Cabe na mesma cabeça do brasileiro cristão médio o comparecimento aos ritos religiosos semanais como o culto à ideologia armamentista, apologia a torturadores oficialmente condenados pelo Estado até o aceite e a conivência com práticas de intolerância e de violência contra minorias sociais.

Exemplar é a deplorável nota do general tuiteiro, abjeta ração para o gado fascista, demonstrando sinais de clara insanidade, publicada em sua conta, no dia 15, onde destaca a “incrível persistência com que pessoas protestam contra os atentados à democracia (delas mesmas), à independência dos poderes, ameaças à liberdade e as dúvidas sobre o processo eleitoral”. Esse é o triste quadro conspirado nos últimos quatro anos. Mas como diria o ministro do STF, Roberto Barroso: “Perdeu, Mané. Não amola!”. Com Lula, o Brasil voltou!

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .

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Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Independente); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .