Em um país de cegos, quem menos vê é quem mais enxerga

“Celui qui a peur de ses ennemis rêve qu´ils l´entourent”. Michel Foucault

Falta uma visão pontual e psicanalítica da política brasileira para entendermos a arquitetura do pensamento e da vontade do politico que se construiu pelas artes do destino por estas vasta e incomensurável terra brasilis. Basta de constitucionalismos, economismos e politicismos e tantos ismos mais. Precisamos, com obsequiosa indulgência, de um divã e de um analista, sem escola designada, que seja freudiano, junguiano, lacaniano, guru de não importa qual terapia cognitivo-comportamental, ainda que beatificado por insigne inspiração filosófica, tipo Foucault, Althusser, Deleuze ou Derrida, ou não, que vasta e sedutora é a oferta no mercado. Que seja um psicanalista, ponto. Alguém capaz e decidido a intervir, se a tanto lhe bastaram engenho e coragem, sobre os agentes que refletem as interações da vida mental, essas construçõezinhas chamadas de id, ego e superego que nos comandam.

Basta de voluntarismos, interesses pecuniários redundantes, caprichos, hipocrisia, individualismo. Uma democracia tolerante e cúmplice de 32 partidos políticos no assédio perdulário aos bens do Estado e indiferentes às necessidades do que alguns saudosistas chamam, ainda, de povo, não nos salvará, nessa impiedosa encruzilhada na qual nos colocamos, dos maus agouros pressentidos. Povo, opinião, consciência política não passam, nestes dias de fantásticas desconstruções culturais, reduções metafóricas apropriadas pela mídia, pelas redes sociais, pelos políticos, pelos sindicatos, pelos movimentos sociais e pelos lobbies.

Chega de tanto “nós contra eles” e de “eles contra nós”. Basta desse bolsonarismo sôfrego de mentecaptos instalados pelas beiradas do poder e desse lulismo desvairado e infantil, com ou sem petismo, aprisionados pela pregação ingênua de soluções paroquiais para problemas definitivamente globalizados. Pensar em uma democracia “brasileira” é como se pretendêssemos gerar uma ciência igualmente “brasileira” ou um sistema de governo “brasileiro”.

Não se pede união de interesses, que na política raramente acontece de os seus agentes se porem de acordo, salvo para querelas e demandas pessoais, próprias aos seus haveres. Impõe-se convergência de propósitos em torno de políticas públicas centrais em um amplo projeto de governo.

De onde partiu, até agora, dentre ministros, juristas, governantes, lideranças partidárias, correntes de opinião, a mídia em geral, as forças obsequiosas da fé e personalidades prestantes das carreiras de estado — donde partiu, até agora, formulação coerente e ajuizada, extraída do bom senso e do esforço e conhecimento coletivos para o enfrentamento das questões que nos ameaçam?

Poucos reparam no que acontece, neste momento, com a Alemanha, modelo de república parlamentar e federativa, dominada pelo renascimento aprumado das velhas inspirações de Weimar. E se o fazem, falta-lhe a percepção do sentido real e do alcance do poder da ideias e do conhecimento sobre a obra dos homens.

A transição de um governo de centro para uma formação de centro-esquerda, realiza-se, ali, naquela nesga de território , palco de tantas obras civilizatórias e de trágicas aventuras, e ocorre orquestrada sobre ideias e proposições concretas, negociadas entre partidos, mas não entre greis partidárias, construída por vertentes de correntes políticas e ideológicas influentes. Tudo se passa à distância dos campos dominantes partidários e eleitorais, ‘a salvo de interesses de grupos, de famílias, de oligarquias sobreviventes, do assédio incontido de políticos mal preparados, e de um canhestro constitucionalismo e retrógrado que impõe mecanismos incontroláveis em um Estado em processo visível de decomposição do seu sistema político.

Construímos um formidável mecanismo eleitoral, com a absorção das tecnologias mais modernas da contagem de votos e cabeças, porém não fomos capazes de dar forma e consolidar um sistema político compatível com os requisitos da representação e do mandato, peças essenciais ao funcionamento do aparelho (no bom sentido) democrático e republicano, como parece ser o nosso caso. Vacilamos diante dos desafios conjunturais, mas quebramos, surpreendentemente com bons resultados, as barreiras estruturais de uma muralha de sabor feudal que ainda nos domina, nas bases do sistema político e do governo. A fragilidade das instituições políticas e os pilares do Estado avançam com a destruição das conquistas celebradas no passado, sem que encontremos, todavia, engrenagens legítimas que as substituam e completem.

Somos ágeis na produção de leis para que não sejam cumpridas, aviamos cartas constitucionais com rigor cirúrgico. De tão amplas e complexas, perdem a importância e a sua aplicabilidade, se já parecia discutível quando concebidas na mente de constitucionalistas improvisados, torna-se dispensável com o passar do tempo. As reformas, anunciadas, a cada novo governo ou às vésperas de eleições, fogem das pautas legislativas como o diabo fugia, outrora, da cruz. Fazem-se consertos, cerziduras jurídicas, aplicadas com retalhos constitucionais, às pressas. O essencial fica para os acertos e negociações de lideranças, figura parlamentar anacrônica de um mecanismo carregado de esperteza que reduz o peso da influência dos eleitores sobre os seus representantes e dá-lhes autonomia para decidir sobre o que lhes convém.

Se não se organizar um movimento poderoso de ideias e projetos em uma plataforma de governo, com apoio de setores influentes da empresa, da academia, de setores modernos da economia e da sociedade (e mais por onde sobrar resiliência, determinação e seriedade entre nós) prevalecerá, como sempre ocorreu na política brasileira, mais uma vez, a conjunção de interesses dos que se servem habitualmente dos favores e da indulgência de poderes sem uso e serventia de um Estado federal e republicano em ruínas.

A julgar os rumos e a direção seguidos pelo sistema partidário, pela indulgência da justiça e dos seus aviadores, pela negligência dos beneficiários das sinecuras públicas e privadas ou na associação do público e do privado — não teremos chance de escapar desse desastre e das formas trágicas que esse processo atrairá.

O poder moderador eleitoral, no Brasil, sempre foi o “Centro”, saído das poderosas oligarquias regionais, braço alongado dos governos e, agora, do domínio tentacular da mídia tradicional e das redes sociais, dos chamados movimentos sociais e “coletivos”, multiplicados por incontrolável cissiparidade, nas empresas, no serviço público, nas instituições da sociedade. O “Centro” aliciou os “coronéis” do nordeste, as forças politicas despertas, Brasil afora, capitaneou eleições aguerridas, ganhou-as por direito adquirido. Foi PSD, transformou-se em ARENA, tomou a cara de PDS e, nestes tempos gloriosos de um multipartidarismo tentacular, multiplicou-se em 32 partidos populistas. O “Centro” elegeu governos, parlamentares, preencheu cargos e ministérios, deu golpe de Estado, apoiou governos, bancou a mídia, criou fundos eleitorais milionários, associou-se com o privado, encorajou ministros togados a decidir sobre questões essenciais das quais sempre fugiu, por mera conveniência.

Esta é a entidade velada, encarnação de uma metáfora sombria de “alternativa”, terceira via, poder dotado de providencial capacidade moderadora que se apresta a compor com quem der mais no leilão milionário que se aproxima. Com o nosso dinheiro de contribuintes compulsórios, cidadãos nos quais nos tornamos, por fim.

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.

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Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.

1 comentário

  1. Claumir Rocha

    Opiniao tem feito saberes,com a leitura de textos,com basilamento teorico,fica os elogios,e leitruas pra conatrucao,vias tantas vias no processo Politico Brasileiro,precisamos de registro de votis co mais sabedoria,para tirar das viad lobos com peles de cordeirro”…Claumir Rocha