“Calem as armas. Que seja ouvido o grito de paz dos pobres, dos povos, das crianças.” (Papa Francisco)
Movido pelas más – péssimas! – novas que, ao sabor dos noticiários televisivos, vão atualizando dados sobre vidas destroçadas, sonhos e projetos derruídos, bens patrimoniais devastados, seres inocentes levados ao altar dos sacrifícios, sob o furor do monstro sanguinário, insensível, insensato e insaciável que covardemente promove as guerras – sinônimo de morte – com interesses escusos, proveitos mercadológicos (leia-se indústria bélica carente de meios para renovar estoques, para estimular negócios vultosos envolvendo sempre novas gerações de armamentos de maior eficácia, ou seja, de maior letalidade) e, o que é bem pior, sob o manto de desavenças político-geográficas (Vladimir, o frio e calculista imperador russo, e o nefasto sonho de ampliar seu poderio por terras ucranianas; o homem destruindo para dominar) e ideológicas com raízes fincadas na fé, em crenças religiosas seculares (ora Hamas versus Israel; o vingativo Bibi prometendo varrer da face da terra – ou da faixa de Gaza – os que o atingiram no contrapé e quem mais por perto estiver), eu revisitei Saramago.
Para tanto, não me desgarrei do continente (o todo) singrando as álgidas águas do Atlântico como viajante solitário de uma improvável jangada de pedras, bandeiras lusitanas ao vento; não busquei proteção contra eventuais desarranjos da Natureza, em época tão propícia a isso, enfurnando-me em uma caverna; não me vali de todos os nomes de santos ou entes angelicais (enfatizando ter sido ateu o “nobelista” português a que ora me refiro); nem tampouco precisei retroceder no tempo e refazer o trajeto do Novo – o dos evangelhos, em especial o segundo Jesus Cristo – ao Velho Testamento – até o inaugural ato de brutalidade (emblemático, diga-se a bem da verdade, para os atuais e violentos tempos vivenciados pela Humanidade) praticado por Caim, que, já fazendo valer o ora consagrado livre arbítrio e assumindo uma função restritamente deífica, assassina Abel, atenta contra a fraternidade, ou seja, ignora o amor pelo próximo, no caso o próprio irmão.
Confesso, todavia, que, embora mantida a lucidez – sempre em mim manifesta em espasmos, arroubos – à boa distância até de quaisquer ensaios e afastados meros sinais indicadores de incapacitante cegueira branca, inexplicavelmente adquirida, quedei-me circunspecto ante as múltiplas e recorrentes intermitências da morte. Então, resistindo às pressões para que, em face das circunstâncias do evento – a revisitação a um artífice das palavras –, tornasse-me um homem duplicado (leitor e escritor), bem como à inaudita atração sobre mim exercida por barco doado pelo rei a um homem sem o menor traquejo de marinha, sem o auxílio de qualquer marinheiro, e, apenas acompanhado da mulher da limpeza, fez-se ao mar à procura de uma ilha desconhecida, alcancei o meu propósito mediante caminhada pelo pretérito perfeito, lá quando, nos primórdios do século em curso, mais precisamente em 19.9.2001, data em que o jornal Folha de S.Paulo, no suplemento Pensata, publicou artigo de opinião da autoria de José Saramago, versando sobre a capacidade de o Homo sapiens pôr fim à Vida das formas as mais absurdas, sempre agindo como se fora instrumento da vontade divina.
“O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. (…) Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado.”
Convém lembrar que poucos dias haviam transcorridos desde o mundo horrorizar-se ante as imagens do iníquo e covarde ataque aéreo à soberania de um povo, quando aviões de carreira, cheios de gente, sob o alucinado comando de terroristas talibãs – tripulantes e passageiros feitos reféns em pleno voo –, em ação terrivelmente orquestrada, investiram criminosamente contra edificações ícones da segurança, do poder e da pujança estadunidenses, daí resultando a trágica derrubada das torres gêmeas do World Trade Center, no centro nevrálgico do mercado financeiro internacional, em plena Manhattan em cotidiana ebulição. E muitos inocentes tiveram ceifadas as suas vidas, por obra e graça de desejos injustificáveis de grupos de fanáticos, desses que se dispõem a matar e morrer em nome de Deus, certamente o do Velho Testamento que mandava, em batalhas sangrentas, exterminar filisteus até com queixada de jumentos, e inocentes egípcios – não os do exército do faraó de plantão engolidos pelas águas revoltas do Mar Vermelho, após a milagrosa travessia dos hebreus, mas os que sofreram os efeitos das dez pragas, incluindo as crianças abatidas, sem dó nem piedade, por anjo crudelíssimo, a cujos pais não foi dada a oportunidade de marcar com sangue de cordeiros imolados as portas das respectivas casas –, tudo isso em benefício de um povo por Ele escolhido (a escolha, esse iceberg cuja parte aparente revela amor, mas carrega na parte mais robusta e mais profunda o fundamento do ódio), e não o do Novo que se humanizou para pregar o amor fraterno e universalizante.
(Há até quem defenda a tese – pouco ou nada apreciada sob os holofotes da sempre criteriosa e rigorosa Ciência – segundo a qual Lúcifer, Caim e Judas Iscariotes, também crias da onipotência de um Ser Supremo, senhor absoluto do Universo, não passaram de peças movidas pela onipresença divina no amplo tabuleiro de xadrez da existência humana na Terra, sempre em conformidade – obviamente – com as estratégias da deífica onisciência, servindo aos inquestionáveis propósitos do Criador – para quem a humanidade consiste num experimento que só lhe causa arrependimentos –, assim como agiram e agem outros seres de igual espécie, no curso da História e nos tempos atuais, na condição de revoltosos e insurgentes, de violentos contra as pessoas e de traidores e infiéis, para os quais se reservam especiais fossos circulares no invertido cone infernal de Dante. Corro o sério risco de acreditar ser Saramago seguidor dos críticos defensores de tal ideia.)
E o premiado escritor lusitano rotula de “O fator Deus” a razão que move o fanatismo criminoso que se rebela contra os que não professam a mesma fé, não comungam do mesmo ideário, não conduzem as suas vidas sob os preceitos das crenças de seus algozes. E é exatamente com esse título que Saramago produziu o artigo de opinião que ora recuperei, movido pela incompreensão, que sempre de mim se apodera, todas as vezes em que me atordoam notícias sobre fatos em que homens protagonizam a banalização da Morte, a desvalorização da Vida, incluindo os lobos solitários, como o ator de recente drama trágico, um deus raivoso, instrutor de tiro que, em crise de alucinação, sai atirando em quem encontra pela frente, matando pessoas que apenas se divertiam, suicidando-se em seguida, atitude que bem poderia ter tido antes de toda a desgraça infligida a quem nada tinha a ver com seus problemas psíquicos. Procederes que nem Freud explica…
E é a voz inconfundível do desassombrado militante político, do incansável defensor dos direitos humanos e do respeitável provocador que, consternado, ainda ouço ao transcrever o seguinte excerto do aludido artigo:
“E foi o ‘fator Deus’ em que o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o ‘fator Deus’, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos, onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que, depois de presumir ter feito da besta um homem, acabou por fazer do homem uma besta.”
Indulgentes leitoras e leitores, não se trata de estar de um lado ou do outro dos grupos que se dispõem a matar e a morrer. Trata-se, aqui, de defender a Vida, em especial a dos inocentes. Infelizmente, neste exato momento, em qualquer lugar do mundo, haverá um desequilibrado mental, por fanatismo ou formação, maquinando um ataque de graves proporções contra quem pouco interesse nele desperta. E, ao satisfazer a sua insanidade, em ato solitário ou no comando dos que o têm como líder, inocentes pagarão uma conta que certamente não contraíram. E o mundo racional, então, se curvará ante a perplexidade do absurdo de que a Morte sempre se investe para dar vazão ao “fator Deus”.
Onde se dará a próxima desgraça? Só Deus sabe…