Lançado simultaneamente em mais de cinquenta países, “Em agosto nos vemos”, romance póstumo de Gabriel García Márquez, prêmio Nobel de Literatura de 1982, traz para os amantes de Gabo o raro prazer de rever em grande estilo o ficcionista morto em 2014.
Longe de pensar, no entanto, que o livro reedite o melhor do escritor colombiano. Antes pelo contrário, nada que faça lembrar a monumentalidade, por exemplo, do inigualável “Cem anos de solidão” (1967), nem mesmo o que se pensava ser o seu último livro, “Memórias de minhas putas tristes” (2004), cuja construção narrativa sustenta-se no que existe de mais marcante na prosa de ficção de Gabriel García Márquez: uma certa tendência para dispensar à linguagem um tratamento fundamentalmente poético, eivado de metáforas que emprestam ao texto a leveza e a opacidade incomuns para o convencional da prosa de ficção latino-americana. Sem falar, com maior clareza, do que é recorrente em livros de sua primeira fase, o realismo mágico ou fantástico, de que o clássico “Cem anos de solidão” é o maior exemplo, pelo uso de símbolos e metáforas ainda mais desconcertantes.
Não, “Em agosto nos vemos” é um romance menos pretensioso sob este aspecto, muito embora quase irretocável do ponto de vista formal — uma narrativa leve, solta, sedutora, a que se soma um enredo original, mesmo em se tratando de uma história simples, plasmada na realidade factual, como o próprio García Márquez sempre fez questão de evidenciar sobre o conjunto de sua vasta obra: todo mês de agosto, Ana Magdalena Bach, a protagonista do livro, casada, com filhos, de meia-idade, viaja para uma ilha do Caribe em que a mãe está sepultada.
Mais que visitar o túmulo de sua genitora, porém, a viagem é a alternativa encontrada pela personagem para dar vazão à sua plena feminilidade, ao desejo sexual supostamente irrealizado, em casa, em toda a sua intensidade. O que poderia resultar bizarro, na linha de romances menos exigentes do ponto de vista literário, no livro de Gabriel García Márquez, publicado há poucas semanas, o leitor depara com um texto elegante, vazado numa linguagem nunca apelativa e extremamente bem cuidado na perspectiva de sua tessitura dramática.
Não é sem razão, portanto, que se pode dizer que Gabo escreveu um de seus livros mais humanos, sem jamais incorrer em divagações de cunho reflexivo que levem o leitor a criar expectativas punitivas para Magdalena Bach, emitindo juízos sobre o que o senso comum historicamente tende a condenar, sobretudo em se tratando da mulher.
Nesse sentido, insisto, é isenta a forma como o narrador expõe essas experiências “transgressoras” da personagem, atendo-se a contar com suavidade o que, a juízo vulgar, poderia soar grotesco, impuro, gratuitamente erótico.
Nada disso: as estratégias narrativas sobressaem no estilo inconfundível de García Márquez: há poesia, delicadeza, senso de medida na descrição das experiências objetivamente sexuais, recorrentes no desenrolar da história.
Não há defeitos, então? Há, e isso é visível já no primeiro capítulo do livro. A rapidez com que Ana Magdalena Bach se entrega ao primeiro caso extraconjugal, com um homem desconhecido, é quase inverossímil, implicando numa incorreção de natureza rítmica que a princípio causa ao leitor um estranhamento, e pode levá-lo (como a mim ocorreu) a antecipar incorretamente um juízo estético do livro. Isso, felizmente, se desfaz muito antes da metade da leitura (o romance tem 111 páginas) e a narrativa passa a se desenvolver num ritmo condizente com o desenrolar da tessitura dramática.
Sem cometer spoiler, espero, concluo reportando-me ao desfecho do romance, dos mais belos de toda a obra de García Márquez. Com economia de meios, e uma absoluta sensibilidade estética, constitui um momento sublime deste surpreendente “Em agosto nos vemos”.
O parágrafo final é deslumbrante. Se o romance começa claudicante do ponto de vista narrativo, o final é obra de um mestre e toca fundo o coração do leitor. Recomendo.