O genial Belchior, em Alucinação, que também é título do disco lançado em 1976, movido pelo realismo que o conduzia nesse período (depois ele se perde e tangencia pela marginal, se esconde e exercita o direito de desaparecer), escreveu em um dos seus versos, […] “Eu não estou interessado em nenhuma teoria, nem nessas coisas do Oriente, romances astrais, a minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é a experiência com coisas reais”. Neste passo, já antevia uma realidade caótica que estava por vir quase meio século depois, como a que vivenciamos nesses tempos pandêmicos.
Compartilhando das angústias e delírios de Belchior, igualmente vivenciados pelo brasileiro em geral na realidade em curso, peço licença ao leitor para fazer uma pausa na crítica político-econômica e na análise sociológica que publico semanalmente neste espaço, para reportar-me um pouco sobre a complexidade da vida na natureza e o egoísmo dos hominídeos.
No artigo de hoje, o primeiro de 2021, depois de vivenciarmos o alucinante 2020, que nos ensinou muito, inclusive a enfrentar o dia a dia, vivendo a experiência dramática no enfrentamento das coisas reais trazidas pela pandemia, a reflexão a que procedo vislumbra um novo tempo, e o surgimento de uma sociedade, ainda que com suas abissais diferenças e complexidades, seja menos egoísta, com apoio no comportamento colaborativo de cada indivíduo, em favor da outro, para a conquista do bem coletivo.
Em meio ao negacionismo dos “neoinsensatos”,e do sofrimento que, em maior ou menor monta, nos atinge a todos, mostramos neste escrito, “um novo olhar sobre a vida na terra”, escudado no pensamento do cientista e pesquisador Antônio Donato Nobre,(https://youtu.be/QtQ86yfikes0), para quem a Natureza, com toda a magnitude de sua complexidade, cujas dimensões são semelhantes àquelas com as quais lidam os astrônomos (nos parágrafos subsequentes vamos conhecer um pouco dessas dimensões), ainda assim, atua de maneira absolutamente harmoniosa e colaborativa, adotando um regime de tolerância zero com qualquer manifestação de egoísmo.
Cientistas como o micologista estadunidense Paul Stamets, que pesquisa as propriedades terapêuticas dos cogumelos, no tratamento do câncer e HIV; e também o suíço Hernest Gotsch, que estuda agricultura sintrópica, dentre outros, são taxativos em acentuar que, diferentemente de como agem os homens em suas diversas interações sociais, na Natureza, o que existe é amor incondicional. A linha mestra do funcionamento do sistema natural é cuidar do outro, algo raro entre os humanos.
Para demonstrar a complexidade e, ao mesmo tempo, a harmonia do funcionamento da natureza, o pesquisador Antônio Donato toma como exemplo as estruturas celulares do corpo humano, formado por 100 trilhões de células, cada qual com 100 trilhõesde átomos, sendo que dentro de cada célula existem 23 mil genes, cujos estudos para o mapeamento das proteínas, codificadas por esses genes, estão a indicar a existência de pelo menos 92 mil proteínas, e seguem descobrindo outras em números ainda não quantificados. Para ele, a magnitude dos números que formam o sistema do corpo humano e sua complexidade é de tal grandeza que, […] “torna o ser humano uma galáxia ambulante do sistema celular” – não é do sistema solar, adverte.
Para evidenciar ainda mais essa complexidade e o seu funcionamento integrado e harmonioso, ele expressa que, das aproximadamente 37 trilhões de células individuais do corpo, e outras quase 50 trilhões, das chamadas células procarióticas, que são as bactérias que povoam o microbioma do aparelho digestivo, esse cosmo, essa galáxia do sistema celular ambulante, que é o corpo humano, funciona de maneira colaborativa absoluta. O Cientista nos chama atenção, ainda, para o fato de que, quando uma dessas trilhões de células, por alguma razão, resolve não mais colaborar, ela passa a ser objeto de estudo de um ramo da Medicina chamado Oncologia – porque é um tumor.
Se fizermos um paralelo com o funcionamento político-administrativo que se observa na realidade em curso no País, constata-se que sua célula principal tem usado todo o seu potencial contaminante para infectar, não só, o microambiente da estrutura do governo, mas uma parte significativa das células que formam o organismo social brasileiro, já em agudo estádio tumoral.
Outro aspecto importante dessa complexidade da Natureza, e seu funcionamento harmônico é confirmado, afirma o pesquisador, pela atuação das células especializadas, as somáticas, que exercem apenas uma pequena parte do potencial genético que possuem, pois cada célula do nosso corpo, as chamadas eucarióticas, quer dizer cada célula nossa mesmo, tem o genoma completo, mas se é uma célula de pele que produz queratina, isso quer dizer que só uma pequena parte do genoma, que codifica para queratina, está atuante em uma ação específica no corpo; isso significa que todas estão atuando em seu menor potencial genético, pois elas não têm o que em economia é chamado de exuberância, crescimento, atuam dentro de uma área específica para o funcionamento do conjunto.
Nesse contexto, Antônio Donato pede que atentemos para outro aspecto ainda mais importante desse funcionamento colaborativo absoluto da Natureza: que é o fato de que, se alguma dessas células, por qualquer razão, se danificar e ficar egoísta, quiser crescer e se multiplicar, as células do sistema imune, os linfócitos que exercem o papel de polícia e combate ao egoísmo, entram em ação, virando uma espécie de chave dentro do organismo, e essa célula comete suicídio. É a chamada proptose. É assim que funciona o sistema natural. Não pode haver egoísmo no sistema natural, porque degrada todo o subsistema, porque ele é entrópico e não sintrópico – acentua.
Nessa perspectiva, a reflexão que se impõe a todos é, como que diante de tão magnífica estrutura multicelular, e exuberante demonstração de perfeito funcionamento, dessa galáxia que é o corpo humano, cuja resultante é a nossa própria existência na qualidade de pessoas dotadas de toda essa complexidade e harmonia natural que nos garante vida na terra, ao contrário do funcionamento colaborativo absoluto que ocorre em nosso sistema celular, adotamos um modo de vida que se funda nas mais diversificadas modalidades de egoísmo, incentivando e sedimentando uma cultura que consagra esse sentimento, até mesmo nas configurações esportivas que praticamos, onde prevalecem os mais fortes e os mais hábeis, em detrimento do outro, do coletivo.
A sugestão que me permito deixar para reflexão é que aproveitemos esse momento desafiador trazido pela pandemia, que, malgrado os mais de 200 mil mortos, (nosso respeito e solidariedade a essas famílias), deu ensejo à aceleração dos processos de consciência, da maioria que mantém preservado o uso da razão, para colocarmos perante a consciência coletiva a percepção que os índios já possuem, desde sempre, ao largo da existência, que na Natureza impera a colaboração. Por que não entre os humanos?
Para os cientistas aqui citados, […] “sem colaboração não existe complexidade, e a complexidade é a base, a essência para nossa existência”. Sem complexidade não existe um sistema autorregulado como observamos na Natureza.
É preciso reconhecer e admitir que o funcionamento da pessoa para si mesma é uma terrível anomalia – uma anomalia cancerígena para com a natureza e para o coletivo; precisa ter um fim, pois já causou danos irreparáveis para todos, e submete a risco até existência da Humanidade. Não podemos mais viver em uma sociedade tumoral.
Precisamos de Gaia, sem a qual não haverá ciência, e a vida, a existência, se esgotam.
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