Educação e colonização do imaginário, por HELIANA QUERINO

Uma das bestas negras de Bolsonaro é Paulo Freire. As raízes do feito que o levaram ao governo e que podemos observar postumamente no patrono da educação, estão largamente no fenômeno da crônica que escrevi sobre a TV, em outra semana. Como participei da vanguarda do espetáculo na minha cidade pequena, em ligeira fase da infância. E as desventuras da vizinha Diane, que despertou pena em alguns leitores e leitoras. Vítima de uma pseudo-cultura que acreditava ser preciso nascer branca, loura e rica, me fizeram escrever um pouco mais sobre o assunto… E por que isso tem a ver com educação?

Hoje tenho a impressão de ver com os meus olhos Diane chegar lá no céu, na casa de São Pedro, com o pretexto de ver a água despencar do infinito em direção à terra, e depois “escorregar devagar até o chão da sala” para assistir,  com o Santo, a gigante tela do planeta terra, para ser, depois, ainda mais infeliz…

Pão e circo.

Já ouvi dizer que a TV foi uma das causas das migrações da África rumo à Europa… e possivelmente, do campo para a cidade.

Às vezes, com carinho, eu penso nos primeiros colegas de classe, principalmente os mais pobres, coisa que as crianças frequentemente não compreendem.

Na crônica “A TV de botas brancas” uma menina, abaixo da escada social, sonha com coisa absolutamente inatingível para ela. Não era uma “ampliação de horizontes”, como dizem os que defendem a televisão, mas, unicamente, fonte de frustração ainda maior do que antes.

E eu, vítima inocente desta lavagem do cérebro, orgulhosa de contribuir com a difusão do novo estilo de vida… Como nos enganam bem.

Uma coisa complexa para nossas cabecinhas, não nos dávamos conta do importante problema histórico e sociológico, que constitui, ainda, uma das causas antecedentes da criminalidade: o desejo de participar, a qualquer custo, do consumo e espetáculo. Até mesmo matar, para comprar um celular.

O papel nefasto do mau uso da televisão conseguiu fazer o pobre se envergonhar ainda mais de ser pobre. Em outros lugares do mundo, lugares grandes ou pequenos, coisas semelhantes aconteceram desde os anos 1950. As pessoas com poucos recursos se envergonharam por beber vinho ou cachaça do alambique em casa, ao invés de coca-cola; de costurar a roupa em casa em vez de comprar roupas da moda; comer as frutas da estação ao invés de comprar a “goiabada cascão”; a doce coalhada caseira e não o “danoninho que vale por um bifinho”…

Esta mudança antropológica significava, justamente, uma perda de autonomia das comunidades locais. Meu tio vendia as bananas do sítio e comprava doces enlatados.

E mesmo que Diane tivesse dinheiro para comprar as roupas e acessórios que desejava, nunca poderia mudar a cor da pele. Sentia-se sempre marginal e com vergonha.

É fácil simpatizar com os pobres e os infelizes quando são belos e simpáticos. É demais descrever que Diane “babava pelo canto da boca” mas era ela, na sua real humanidade. Um retrato de Diane, aquela existência infeliz. Talvez nem todos os parentes lembrem mais dela. Mas enquanto alguém se lembra de uma pessoa, ela não morre completamente. Claro, não tem serventia aos que morrem. Mas há quem acredite neste tipo de justiça cósmica. É uma das tarefas dos escritores perpetuar um pouco a lembrança dos que, aparentemente, passaram pela terra sem deixar rastros. Sempre pensei isso, e recentemente reli em Stendhal o mesmo pensamento.

Mas, voltando ao Paulo Freire, tantos esforços para alfabetizar as populações marginais e transmitir uma consciência civil, foram vencidos e aniquilados não com repressão política, mas com a distração e adestramento.

O espetáculo, o entretenimento, a ilusão são armas muito mais poderosas que o fuzil.

A origem remota de Bolsonaro está nos programas de TV que assistimos na infância.

Quem não lembra de Berlusconi na Itália, tão falado no Brasil? Com ele, a relação é ainda mais evidente, pois levou para o país, a TV deste tipo e se tornou mais à frente, o primeiro ministro por muitos e muitos anos.

Paulo Freire e muitos outros tentaram criar um Brasil melhor, mais justo, onde inclusive pessoas como Diane poderiam ter uma vida digna. Freire queria alfabetizar sujeitos iguais a ela, suscitar o gosto pelos livros, pelas discussões e questionamentos, e depois na atividade política. Por causa disso, as oligarquias o detestavam e o forçaram a exiliar-se.

Mas teve um período (1990-2010) onde o Brasil parecia progredir. Agora não mais, os demônios do passado voltam, e Freire é “exilado” uma segunda vez, assim como tudo o que ele representa.

Mas esta nova vitória dos que governam com a ignorância não cai do céu. É fruto de uma longa evolução, onde as “mass-media” jogam um papel determinante.

Não podemos condenar uma criança como Diane porque preferia um programa de televisão recreativo aos estudos. No entanto, os que queriam que gente como a pequena telespectadora ficasse sempre ao rés do chão, bem sabiam desfrutar da necessidade humana de ilusões e levar todas as vantagens – econômicas, políticas, de mentalidade.

 

Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista

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