Edgar Morin, em seu livro “Em busca dos Fundamentos Perdidos – Textos sobre o marxismo”, publicado no Brasil pela editora Sulina, considera como fundamentais duas ideias de Karl Marx: a previsão da tendência de mundialização do capitalismo, na sua obra O Capital; e a ideia de homem genérico, nos Manuscritos Econômicos Filosóficos.
Sobre a ideia fundamental de Karl Marx, de que o capitalismo tinha como uma de suas características a tendência à mundialização, Morin destaca que ele foi certeiro no seu diagnóstico, mas não podia ver o papel maior da ciência e da tecnologia associado à tecnociência do século XX e nem à articulação do quadrimotor ciência-técnico-indústria-lucro como propulsora cada vez mais do devir do nosso planeta. Marx não percebeu que o processo de expansão do capitalismo é como uma hidra que tem várias cabeças. A partir das reflexões apresentadas por Edgar Morin (2002, p. 94-99) sobre o marxismo, reproduzo de forma sistemática cinco dos seus argumentos:
1 – Para Marx, a ciência trazia a certeza. Hoje, sabemos que as ciências trazem certezas locais e que o conhecimento científico desemborca em insondáveis incertezas. Para ele, a filosofia deveria ser necessariamente superada. Hoje, todos os avanços das ciências reanimam as interrogações filosóficas primeiras;
2 – A concepção de antropologia de Marx era unidimensional, não fazia parte da realidade humana profunda, nem imaginário nem mito. O ser era um homo faber, sem interioridade, sem complexidade; um produtor prometeico, destinado a derrubar os deuses e dominar o universo. Ao contrário, o homem é um ser complexo, múltiplo, trazendo em si um cosmo de sonho e de fantasias; homo é sapiens-demens. Ailton Krenak nos lembra de que (2022, p.38): “os orixás, assim como os ancestrais indígenas e de outras tradições, instituíram mundos onde a gente pudesse experimentar a vida, cantar e dançar, mas parece que a vontade do capital é empobrecer a existência”;
3 – Marx acreditou ter apreendido as leis do devir histórico. Hoje, aprendemos que, cada qual a seu modo, os mundos físico, biológico, humano, evoluem segundo dialéticas de ordem/desordem/organização, comportando acasos e bifurcações e, no limite, ameaçadas todas pela gradual destruição;
4 – O marxismo concentra no capitalismo todos os males que sofre a humanidade na sociedade moderna. O socialismo era o remédio para todos os males da humanidade. Hoje, sabemos que, em nossas sociedades complexas, o capitalismo é um dos traços da dominação e da exploração, mas não o único;
5 – A concepção marxista de sociedade privilegia as forças de produção e a luta de classes. A chave do poder sobre a sociedade estava na apropriação das forças de produção.
Marx tinha certeza da missão histórica do proletariado para criar uma sociedade sem classe. Todavia, a história, mesmo obedecendo a diversos determinismos, é tributária do acaso e conhece bifurcações inesperadas. Portanto, é preciso saber que a crença na missão histórica do proletariado não é científica: é a transposição para nossas vidas terrestres da salvação judaico-cristã prometida para o céu. Esta ilusão foi trágica e devastadora.
Para Edgar Morin, o marxismo percebeu a necessidade de uma segunda mundialização dentro do processo civilizador moderno, capaz de realizar a sua promessa de emancipação, o que permitiria aos homens reencontrar o seu ser genérico, uma segunda mundialização que – prefigurada nas internacionais comunistas e no apelo de Marx no final do Manifesto do Partido Comunista: “ proletários de todos os países uni-vos” – foi morta pelo fato do marxismo não ter compreendido a realidade e a complexidade do Estado-nação. Como afirma Krenak (2022, p. 89): “a ideia desses Estados nacionais é muito limitada, muito pobre, e a gente tem que ser capaz de atravessar tudo isso e confluir”.
Em relação à ideia de homem genérico apresentada por Marx, Edgar Morin esclarece que nela o homem é essencialmente “um homo faber e economicus”, ou seja, “ o homem genérico em Marx é destituído de subjetividade, de amor, de loucura, de poesia” (2002, p. 21). Seu conceito de homem genérico é pobre, tem por referência o gênero humano, como se existisse em essência “o homem total”. Todavia, diz Morin: “não existe o homem total. Nossas contradições e nossos limites não podem ser suprimidos. Eles nos levam, ao contrário, a nos transformarmos transformando o mundo” (2003, p. 31). Portanto, é preciso enriquecer o conceito de homem genérico apresentado por Marx.
Na sua pretensão de enriquecer o conceito de homem genérico de Marx, Edgar Morin traduz o homem genérico como a “aptidão para gerar todos os caracteres e todas as qualidades humanas manifesta no curso da história, assim como inumeráveis outras virtualidades ainda não realizadas” (2002, p. 21). O interesse no termo genérico para Morin se dá pela possibilidade dele nos conduzir para a “humanidade da humanidade”, coisa análoga às potencialidades das células-troncos do embrião, que são capazes de regenerar membros lesados, curar novos órgãos e até mesmos concluir a colagem de um novo membro.
Ao enriquecer o conceito de homem genérico de Marx, Edgar Morin passa a entendê-lo como “origem e principio ao mesmo tempo”. Trata-se de uma dupla verdade dialógica na qual a finalidade humana (télos) passa pela origem genérica (arkhê), segundo um circuito arkhê-télos no qual o progresso só pode advir do retorno ao arkhê e não do seu esquecimento. Portanto, “para progredir é preciso reencontrar a fonte geradora. Para manter o que se conquistou, é preciso incessantemente regenerá-lo” (2002, p. 22). Longo, o futuro é ancestral.
Para Edgar Morin:
É às formas nascentes (criadoras) da linguagem, do espírito, da consciência que é preciso recorrer. Assumir a relação inicial da trindade indivíduo/sociedade/espécie é reencontrar a arkhê e é apostar no futuro. Assumir conscientemente esta trindade é escolher o destino humano em suas antinomias e sua plenitude, e com isto afirmar, ao mais alto grau, a liberdade que é assim porta a serviço não somente de si mesma como também da espécie e da sociedade […] O progresso deve então aparecer como um trabalho do homem genérico em nível planetário. Eis por que nosso devir planetário precisa de uma antropoética e de uma antropolítica que associem a regeneração da verdade genérica e a busca de um progresso regenerado (2002, p. 23).
O que permite Morin atualizar o conceito de homem genérico de Marx é a saída da racionalidade sistêmica dialética para uma racionalidade dialógica da complexidade, a qual nos permite entrar em sintonia com a visão dos povos indígenas, dos povos africanos sobre a ancestralidade. Quando Ailton Krenak afirma “os rios, esses seres que sempre habitavam os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui” (2022, p. 11) tem a mesma compreensão expressada por Morin de que grande é a verdade do retorno ao original. Para Morin, “o original é o ser inacabado por nascimento; é a infância salvaguardada no avanço da idade; é a polivalência e as múltiplas potencialidades do homo complexus, é a comunidade de uma sociedade” (2002, p. 22). Para ele, tudo o que não se regenera degenera. Como nos ensina Krenak (2022, p.31): “de ré, poderíamos dizer que no princípio era folha. Outras narrativas vão dizer que no princípio erro o verbo. Outras ainda vão criar paisagens bens diversas, e isso é maravilhoso”.
Para Edgar Morin: “não se pode mais conceder ao marxismo o monopólio do conhecimento pertinente, o monopólio da compreensão do mundo, o monopólio da ação salutar” (2002, p. 24). Contudo, há ainda muitas inspirações fecundas a serem encontradas no pensamento marxista. Marx deve ser superado, isto é, integrado na constituição de pensadores que podem iluminar nossas reflexões sobre o processo de transformação do mundo. Diante desse desafio, Krenak se coloca de forma propositiva (2022, p.32): “o desafio que proponho aqui é imaginar cartografias, camadas de mundos, nas quais as narrativas sejam tão plurais que não precisamos entrar em conflito ao evocar diferentes histórias de fundação.”
Referências
MORIN, Edgar. Em busca dos Fundamentos Perdidos. Textos sobre o Marxismo. Porto Alegre: Editora Sulina, 2002.
KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.