É possível uma democracia brasileira? por Alexandre Aragão de Albuquerque

Não se concebe democracia sem organização política. A organização é nas mãos dos fracos uma ferramenta de luta contra os fortes. E para ter sucesso, há que ter solidariedade entre os indivíduos com interesses idênticos. Essas são palavras introdutórias escritas por Robert Michels em seu clássico Sociologia dos Partidos Políticos.

O mito fundador brasileiro parece desafiar tal corolário. Uma fundação por definição tem como objetivo tornar-se perene. Um mito é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novas ideias e valores de tal modo que, quanto mais pareça ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.

Por exemplo, cada um de nós, brasileiros e brasileiras, experimenta em seu cotidiano a forte presença de uma representação homogênea de nosso país. Essa representação nos permite acreditar na unidade de nosso povo, mesmo se os negros foram tratados como escravos por quase 400 anos de nossa história e os povos nativos violentamente dizimados. Alimenta-se a crença de que o Brasil é uma terra abençoada por Deus e pela Natureza, que possui um povo generoso e alegre, mesmo quando submetido a opressões de natureza política, econômica e social. Que somos um povo pacífico e ordeiro, não obstante os sessenta mil homicídios registrados no ano de 2015. Aqui só não progride quem não trabalha, pobreza é sinônimo de preguiça mesmo se escandalosamente 1% da população retém 50% da riqueza produzida socialmente.

Expressão dessa mitologia nacional encontra-se na ideologia do verdeamarelismo. Essa é uma imagem celebrativa do país definida pela extensão do nosso território, visando a legitimar no tempo a continuação do sistema colonial e a hegemonia dos proprietários de terra do Império e no início da República dos marechais. Não é coincidência, portanto, quando em março de 2015, os batedores das panelas tramontina da Av. Paulista estão todos travestidos com a camisa canarinha. Um dos pontos centrais do verdamarelismo é afirmar categoricamente que aqui não é lugar para a luta de classes, mas para a cooperação entre ricos e pobres, entre capital e trabalho, sob a forte vigilância do Poder Central.

É preciso conhecer e compreender o nosso mito fundador em suas expressões hodiernas. O Golpe de 2016 foi perpetrado para manter viva a disparidade e heterogeneidade nacional sob o manto desse fantástico engodo ideológico. O Golpe tem endereço certo: atacar as conquistas alcançadas pelo povo brasileiro obtidas na Constituição de 1988 visando à destruição de suas organizações políticas e por meio das contra-reformas trabalhista e previdenciária, impedindo os investimentos sociais do Estado por 20 anos seguidos, para eternizar os privilégios dos um por cento abastados do mercado financeiro.

Mas não existe democracia sem organização política, sem liberdade de expressão e de ação, sem igualdade entre os cidadãos. O desafio está lançado: ou desafiamos e superamos as bases que retroalimentam nosso mito fundador ou estaremos condenados a golpes ininterruptos em nosso atropelado e longínquo amanhecer democrático.

Alexandre Aragão de Albuquerque

Mestre em Políticas Públicas e Sociedade (UECE). Especialista em Democracia Participativa e Movimentos Sociais (UFMG). Arte-educador (UFPE). Alfabetizador pelo Método Paulo Freire (CNBB). Pesquisador do Grupo Democracia e Globalização (UECE/CNPQ). Autor dos livros: Religião em tempos de bolsofascismo (Editora Dialética); Juventude, Educação e Participação Política (Paco Editorial); Para entender o tempo presente (Paco Editorial); Uma escola de comunhão na liberdade (Paco Editorial); Fraternidade e Comunhão: motores da construção de um novo paradigma humano (Editora Casa Leiria) .