E- Leituras, contra ventos e marés

Eu sei, o assunto do momento são as eleições. Mas, como escrever sobre algo que não me causa nenhum tesão? Antes de viajar para passar alguns dias com a família, fui, depois de quase oito ou nove meses, à Livraria Cultura comprar livros que há meses namoro à distância. No Uber, passei em frente ao antigo prédio da Dom Luís, o que, curiosamente, me fez lembrar fotos famosas de livrarias destruídas; as ruínas de uma livraria inglesa, atingida em 1940 por bombardeios alemães. Os clientes não desanimam e continuam a navegar pelas prateleiras, mesmo quando o telhado não está mais lá.

 

Ou a imagem onde não se vê senhores com o típico “melão” inglês lendo nas ruínas, mas um menino.

Estas imagens são usadas para lembrar ou para indicar o espírito de resistência (ou “resiliência”, como se diz) dos ingleses.

Outras mostram cenas, após os bombardeios, comerciantes ingleses exibindo orgulhosos avisos para dizer que se mantiveram abertos. Um espírito de combate tipicamente britânico, também expresso nas frases ‘’Keep calm e carry on’’ ou ‘Keep a stiff upper lipp’?  Talvez.

As imagens dos leitores resistentes também nos falam sobre a força de resistência dos livros, sem interessar-nos as condições exatas da sua criação, se foram ou não ‘imagens posadas’. O que aparece nelas e tem sua importância histórica nos lembra os soldados lendo nas trincheiras, as enfermeiras lendo em um canto de um hospital durante um intervalo, as pessoas que escolhem cuidadosamente os livros que podem levar para a prisão. Não se trata apenas de cultura em um sentido geral – mas daquele pequeno e compacto objeto que é o livro impresso, e que nos permite levar conosco um mundo inteiro.

Cada bom livro contém a promessa de revelar um pedaço dos mistérios do universo, e podemos nos dedicar a esse prazer nos lugares e ocasiões mais surpreendentes. Aqueles que estão sozinhos, aqueles que estão desesperados, aqueles que compram duas poltronas no ônibus para viajar apenas com os livros na poltrona ao lado, aqueles que tiveram as almas dilaceradas num ano para ser esquecido…, podem se reconectar com o mundo, sabendo que são parte de um todo. Pois, como disse Proust em sua magnífica prosa, ‘a leitura é o supremo ato de transformação do ser humano. No silêncio e na solidão, ler é um meio, e não um fim. É ter ‘as chaves mágicas que nos abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas nas quais não teríamos sabido penetrar’.

Podem se consolar com a ideia de que outros antes dele se alegraram ou sofreram, pensaram e sentiram coisas semelhantes.

E isto pode ocupar-nos tão fortemente que esquecemos, em certos casos, que estamos com fome, que estamos com medo, que alguém está nos esperando, que estamos tristes, que choramos por causa de alguém, ou que as balas estão voando ao nosso redor, ou que animais estão sendo envenenados nas ruas. Jean-Jacques Rousseau conta em suas Confissões que quando seu romance  A Nova Eloise  saiu, uma grande princesa começou a lê-lo enquanto sua carruagem a esperava na rua para levá-la à Ópera. Ela continuou a ler, respondendo ao cocheiro ‘’mais dez minutos’’ sempre que ele lhe perguntava se já queria sair. E passadas várias horas, a princesa pede ao cocheiro que desarreie os cavalos e ponha de volta a carruagem no barracão: ela precisava continuar a leitura daquele livro.

Certa vez, uma pessoa me disse não gostar de ler, mas falar com pessoas vivas. Eu respondi (talvez não sou a primeira na história, vi algo parecido em alguma página): estou de acordo – eu também preferiria falar com Sócrates e Cervantes, com Emile Bronté, Simone de Beauvoir, Tolstoi ou Marx, Cecilia Meireles, Santa Teresa d’Ávila, Camões e John Donne, com Jane Austen, Arendt e Woolf se pudesse reuni-los todos comigo e conversar.

Hoje, muitos estão quase totalmente absorvidos em seus smartphones. Mas, será que é a mesma coisa? Pode-se duvidar disso. Vamos à Internet para “navegar”, para nos divertir e divertir, para ir de um assunto a outro. Podemos ler várias coisas, pesquisar, nos informar, mas é difícil se concentrar durante horas em um romance, em um ensaio… E muitas vezes, corremos o risco de deixar escapar o essencial.

Será que o amor aos livros, demonstrado por uma geração durante a guerra, é eterno? Ray Bradbury previu um futuro diferente no romance Fahrenheit 451, de 1953. A Internet seria também o fim do livro impresso? Hoje, as livrarias são muito raras, não somente na Inglaterra, mesmo em cidades universitárias e pelas bandas de cá. A cultura da Internet foi mais destrutiva do que a guerra?

Esta reflexão que publico na internet não tem cheiro, nem cor, grandeza ou mistérios das páginas de uma coisa mágica chamada livros impressos – de Nélida a Proust, de Clarice a Cortázar.

Heliana Querino

Heliana Querino Jornalista

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Heliana Querino Jornalista