O bichano Nabuco, Companheiro Acácio e eu, mergulhados em elucubrações, ficamos sem nada fazer; melhor, sem nada tramar, por mais de quinze dias. “Laborando no oco do vazio”, como bem definiria o nosso proto–filósofo de Licânia, João Américo.
De repente ouvimos uma zoeira. Apuramos os ouvidos e era como se toda a cidade gritasse:
— Lau! O Lau voltou!
Quando resolvemos observar o que ocorria, eis que demos com a figura messiânica do Lau, a arrastar, com ares de franciscano santificado, a sua cruz com rodinhas. Ao seu lado, uma multidão em êxtase.
— Se Lau cumpriu com a promessa, então a cura está próxima — alardeou uma das pias filhas de Maria.
Neste momento senti um miado aos meus pés, era o Nabuco:
— Sh…. Sh… Shizzz… Sh… miau!
Companheiro Acácio voltou os seus olhos flamejantes de investigador para o pequeno felino, a exigir-lhe recato e boca fechada. Pouco depois confidenciou:
— Há algo de estranho no reino de Licânia, Clauder Arcanjo. Contudo, melhor investigarmos com profundidade. De início, bem nos ensina a prudência, mantenhamos o silêncio típico de um Watson. Elementar, não, meu caro?
Apesar de detestar aquela sua veia de investigador de província, não me restou outra opção a não ser a de concordar com a estratégia sherlock–acaciana.
Enquanto isso o povo em festa: Lau se transformara no ídolo da cidade, quase um bendito naquela calamidade pública. Apesar dos rogos do Dr. João Victor de que mantivessem o distanciamento social, a turba não lhe dava ouvidos. Em terra de pandemia é fácil o povo eleger um mito.
— Lau! Lau! Lau!…
Acácio se aproximou do messias de Licânia e observou: a tez não trazia marcas do sol abrasador do sertão, os chinelos não estavam sequer cobertos pela poeira da estrada, muito menos com sinais de quem percorrera mais de três centenas de quilômetros (a distância, de ida e volta, entre Licânia e Canindé), a barba baixa como se a houvesse tratado antes de chegar. Ao fazer a volta no entorno de Lau, Companheiro atentou para o estado das duas rodinhas na parte traseira da cruz: novinhas em folha. E concluiu, em voz baixa, para mim e para o Nabuco:
— Isso não está me cheirando bem. Há aqui o mau cheiro do embuste.
Lau, franciscanamente, arrastava a cruz, a fitar o céu em sinal de que estava a serviço do bom Deus.
— Lau! Lau! Lau!… — aclamavam–no, a se dirigirem ao pátio da Matriz de Sant’Anna.
O padre Araquento esperava a procissão já aspergindo água benta, com todos os sinos a repicarem, festivos.
— Ave, o fili Dei! Ave, novum servus Dei! — saudou-o o velho pároco, dando ao ato, com o seu latim provinciano, um quê de liturgia maior.
Nesse instante o povo todo se ajoelhou diante da Casa do Senhor, e Lau a caminhar por entre os filhos de Deus, em direção ao altar.
— Ave, Lau! — cumprimentou-o Companheiro Acácio, ao tempo em que lhe impedia a passagem.
— A minha bênção, pecador Acácio!
— Lau, se você entrar com tamanha mentira na Matriz, nunca mais você terá paz sobre a face da Terra. Engana-se uma nação, mas nunca ao Todo-Poderoso! —advertiu-o Acácio.
Nessa hora Lau fingiu um desmaio. Os fiéis, tomados pelo ópio do novo eleito, ergueram as mãos para os céus, a exultarem:
— Deus lhe deu a força suficiente tão somente para o retorno. Oremos. Aleluia!
Cabo Jacinto Gamão, com seu cacete de jucá, surgiu e cuidou de dispersar os fiéis, ao tempo em que a Virgulina se aproximava para conduzir Lau ao hospital de Licânia.
— Depressa, vamos, levem–no, ele deve estar à beira de um colapso — orientava Acácio, a empurrar Nabuco e eu para dentro da Rural.
Os sinos dobravam, enquanto hosanas, credos e salve–rainhas ressoavam.
Lau quis se explicar, no entanto foi orientado por Acácio a manter-se calado:
— Tudo que falar pode ser usado contra você.
— Quem teve a ideia foi…
Antes de concluir a declaração, Lau recebeu uma cacetada no cocuruto e manteve-se desacordado. Agora deveras desmaiado, até receber os cuidados médicos.
Acácio, meditabundo, parecia perdido em longínquos pensamentos; e a valente Virgulina, na função de ambulância, a cortar veloz as ruas e os becos de Licânia com o ronco do motor a imitar sirenes.
*Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.
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