É democrática a transmissão de mentiras?

Dos debates produzidos pela turbulenta eleição presidencial estadunidense, a função dos meios de comunicação social e das redes é um dos mais importantes. Emissoras de TV (ABC, NBC e CBS) encerraram transmissões ao vivo quando o presidente Donald Trump começou, de dentro da Casa Branca, a emitir acusações sem provas contra o processo eleitoral, enquanto a CNN optou por continuar a transmissão para, depois, dizer que Trump estava a mentir. Antes disso, Facebook, Instagram e Twitter puseram  advertências em postagens do presidente que continham informação falsa.

Frente a isso, lá e aqui se iniciou um debate acerca dos limites da liberdade de expressão e do poder e legitimidade dos órgãos de imprensa para taxarem como mentira as falas de autoridades públicas ou mesmo de encerrarem transmissões televisivas com tais falas.

É grave ver autoridades públicas, ainda mais um presidente, pondo em questão a legitimidade de instituições, como o é o voto. Sabemos disso por experiência própria (as acusações de Bolsonaro, no começo de março, sobre fraudes nas eleições de 2018 ainda jazem sem a menor prova).

Entra em cena a velha história do “perigo do guarda da esquina”.

Em se tratando de Trump, já durante a eleição deu provas de seu pouco compromisso com a verdade factual, sendo um useiro e vezeiro da “pós-verdade” (sobre isso, a leitura de “A morte da verdade”, de Michico Kakutani, é imprescindível).

O assombro, por aqui, em torno do que fizeram as administradoras das plataformas e as emissoras de tv me parece ser fruto do que tem sido nossa relação com as mentiras e os ataques presidenciais às instituições e aos fatos: poucas foram as postagens do presidente com alerta de desinformação, apesar das muitas que compartilha; depois, na ocasião em que esticou a corda rumo à justificativa de um golpe, no conjunto de discursos proferidos entre março e maio contra tudo e todos no país (inclua-se aí, e sobretudo, a “grande mídia”), contando com a ajuda de apoiadores para intimidar jornalistas, mesmo quando optou por deixar de cobrir o presidente no seu “puxadinho”, a imprensa lançou mão de vídeos compartilhados nas redes com os discursos antidemocráticos do presidente. Não enviava mais repórteres, mas continuava a compartilhar as diatribes presidenciais, mantendo o país de olho das palavras do rei.

Assim, manteve-o, com seus ataques, na ordem do dia.

O que a atitude de parte da imprensa norte-americana ensina à nossa é que a transmissão e o espaço destinado à mentiras e ataques à democracia levam à corrosão desta, por dentro, produzindo afetos naqueles que se identificam com o líder. Há um limite, democrático, para a fala política: o da responsabilidade pelo que se diz; ou pelo que se transmite e/ou compartilha.

Emanuel Freitas

Professor Assistente de Teoria Política Coordenador do Curso de Ciências Sociais FACEDI/UECE Pesquisador do NERPO (Núcleo de Estudos em Religião e Política)-UFC e do LEPEM (Labortatório de Estudos de Processos Eleitorais e Mídia)

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Emanuel Freitas

Professor Assistente de Teoria Política Coordenador do Curso de Ciências Sociais FACEDI/UECE Pesquisador do NERPO (Núcleo de Estudos em Religião e Política)-UFC e do LEPEM (Labortatório de Estudos de Processos Eleitorais e Mídia)