Drama barroco sertanejo

Anos trinta do século XX.

“Atira, Gato”, disse Lampião laconicamente.

Gato já estava com a pontaria ajustada e não perdeu tempo. Laconicamente a arma falou num zumbido e acertou o dedo-duro intrigante que tinha a alcunha de Coqueiro.

“Entregador não tem vez no bando”, ratificou Lampião.

Lígia chorava um choro desses de drama trágico, de fim de narrativa, na frente de Zé Baiano implorando seu perdão, pedindo que não a setenciasse por uma paixão.

Baiano, o cabra reconhecidamente forte do bando, que a conheceu quando um carnegão lhe ficou impregnado no pescoço, lhe acometendo de febre e dor. Lígia o tratou com manteiga e folha de pimenteira macerada e fervida –posta no pescoço do homem envolta num panoquando sua mãe recebeu o bando no povoado Salgadinho, perto de Paulo Afonso na Bahia; e foi assim, num instante de febre e cura, que nasceu o amor entre Zé Baiano e Lígia. Zé Baiano perguntou se Lígia queria seguir com o bando e ela prontamente resolveu segui-los, por volta dos quinze ou dezesseis anos de idade.      

Baiano a tratava como uma cortesã do bando; a melhor carne, a melhor coberta, o melhor espólio era dela. As mulheres do bando até lhe lançavam olhares de inveja, de tão bela e bem cuidada que era. E ninguém a tocava, era a preferida de Zé Baiano, do cangaceiro preto, alto, forte, valente, com um misto de rudeza e atenção.

Até que um dia entra no bando um primo de Lígia, Demórcio, o Bem-te-vi. E paixão de primo acredito que boa parte das gentes conhece, boa parte das gentes já teve: acontece. No caso de Lígia e Bem-te-vi foi mais forte, com o agravo da hora pontualmente incerta: não se mexe no que está quieto, não se cutuca cacho de maribondo.

A paixão ia ganhando contorno em olhares e encontros nos bastidores da travessia cangaceira, até que um dia Zé Baiano se encarregou de, em Sergipe, no Poço Redondo, por volta de 1934, ir a outra localidade tentar conseguir algum dinheiro.  

Zé Baiano se despediu, Lígia ficou. Ficou e o Diabo tomou conta na Terra do Sol, sem que Deus intermediasse (ao menos até aqui). A paixão de Lígia e Bem-te-vi aumentou e se perguntavam se era o caso de fugirem juntos, antes que Baiano voltasse, e encontrarem outra vida, melhor, mais pacata. Mas um dia foram vistos por Coqueiro, namorando um tanto longe do acampamento. Coqueiro pediu de recompensa que também tivesse a sua vez com a moça mais bela do cangaço. Lígia, forte que era, lhe disse:

“Morro, mas não lhe dou”.

E foi o que sucedeu. Quando Baiano voltou, a primeira coisa que Coqueiro fez foi contar o que tinha visto. Acredito que nem Otelo tenha sentido tamanho ódio e ciúme, mas Baiano se conteve e perguntou:

– “Isso é verdade, Lígia?”.

“Sim”, ela respondeu. “Mas Coqueiro, que lhe dedurou, queria tirar proveito de mim para que não lhe contasse o ocorrido”.

Laconicamente Lampião disse:

– “Atira, Gato”.

E Gato, que era certeiro, acertou laconicamente o intrigante, “que entregador não tem vez no bando”. Em bando nenhum.

Zé Baiano não sabia o que fazer, enquanto Lígia implorava a ele, a Maria Bonita, a quem fosse, a não ser sentenciada (a essas alturas o primo já estava fugido; talvez não possamos chamá-lo covarde). Zé Baiano, o preto forte do bando,  não podia ceder assim, era crime de honra, e crime de honra se lava com sangue.

Zé Baiano amarrou-a numa árvore longe do acampamento querendo saber, a todo instante, o porquê (o quanto ele a amava, não sabemos) da traição? Não sabemos o que Lígia lhe respondia.

A noite inteira Lígia gritou, chorou, implorou pelo perdão, e pela manhã Zé Baiano, afastado do bando, foi sentenciar, foi concluir o que era necessário. Ouviram-se gritos, ouviu-se choro, silêncio. Até que Baiano retorna ao bando e diz:

“Está feito”.

Então não se falava mais sobre o assunto.

Se ele a liberou (intervenção de Deus na terra do Sol), já que a sentença foi dada num local no qual apenas Baiano e Lígia estavam, não se sabe; se ela, sua Beatriz, sendo liberada, foi encontrar o primo, também não sabemos.

Sabe-se, por alto, que Baiano passou a ferrar mulheres no rosto (até onde isso é boato ou rotina do anti-herói preto cangaceiro, não se sabe), e que o sertão é uma terra frutífera de narrativas, de histórias e enredos, um palco barroco do mundo.      

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"